Tal como no país vizinho, imposição de tarifas reduzidas e diminuição das receitas podem inviabilizar investimentos, o que causaria sucateamento
Naiara Infante Bertão
Setor elétrico, que precisa de constante manutenção, reclama de tarifas que poderão ficar muito baixas
(Divulgação)
A presidente Dilma Rousseff e sua equipe argumentam que os consumidores pagam hoje, de forma indevida, por investimentos realizados no passado e que estariam inteiramente depreciados. Com o novo projeto, os especialistas apontam que, de fato, as tarifas ficarão bem mais baratas, contribuindo para redução do custo Brasil. Por outro lado, como o "diabo mora nos detalhes", haverá um perigoso desestímulo fruto da mudança repentina das regras e, principalmente, do risco de que os novos preços sejam insuficientes para o bom funcionamento do setor. Os concessionários poderão, simplesmente, optar por reduzir gastos com manutenção e ampliação das redes. O Brasil poderia caminhar, desta maneira, ao longo dos anos, para uma infraestrutura energética sucateada e com apagões frequentes – um quadro semelhante ao da Argentina hoje.
É consenso entre os empresários, advogados, consultores e autoridades ouvidas pelo site de VEJA que é louvável a proposta de diminuir a conta de luz em 20,2% em média – até 16,2% para residências e até 28% para indústria. Contudo, a forma e a pressa com que esse processo tem sido conduzido abre espaço a críticas generalizadas.
Fantasma argentino – Um dos principais temores é que as novas tarifas propostas pelo Planalto para que as concessionárias renovem antecipadamente seus contratos não consigam cobrir os custos atuais e gerar provisão para investimentos futuros. Alguns especialistas chegam a dizer que, dadas as devidas proporções (especialmente políticas), o setor elétrico do país caminha rumo a um quadro como o da Argentina: problemas estruturais, parques sucateados, falta de interesse das empresas em investir e apagões no verão.
"Não é exatamente igual, nem tem sido de forma tão truculenta como na Argentina, mas seguimos na mesma direção", afirmou Raul Velloso, consultor econômico com vasta experiência no governo federal. O maior medo, segundo ele, é que as novas regras da MP nº 579, se ficarem como estão, diminuam tão dramaticamente as receitas das companhias que elas vão se tornar "mais operadoras que propriamente concessionárias". Espera-se de uma empresa que detenha a concessão de um bem público justamente a capacidade de realizar investimentos maciços, haja vista que o desenvolvimento econômico deverá exigir cada vez mais de suas estruturas.
Estatização – "A tarifa fixada pelo governo mal banca a operação, a meu ver. Vai chegar um momento em que as empresas precisarão se capitalizar para realizar investimentos", disse. Ele comentou que, diferentemente da Argentina, que vivia no início dos anos 2000 um período de inflação alta e deterioração econômica, o Brasil não tem "desculpa" para baixar tanto a tarifa. "Dá a impressão de que o governo está se articulando no sentido de estatizar o setor, comprando todos os ativos e colocando as empresas para operar, trabalhando com a menor tarifa”, completou.
Adriano Pires, sócio-fundador e diretor do Centro Brasileiro de Infraestrutura (CBIE), também fez referência ao exemplo argentino. Na avaliação dele, a política populista de preços baixos nos segmentos de serviços básicos, especialmente na era Kirchner, a partir de 2003, é a principal responsável pelo caos que perdura sobre o sistema energético do país. "As tarifas de serviços públicos estão congeladas há anos; a rede não teve capacidade para se expandir; não tem recebido a manutenção adequada e não há novos interessados em investir na área em função do baixo retorno e do alto risco político", declarou. Há pelo menos quatro anos, a Argentina enfrenta apagões no verão – o último aconteceu na semana passada, deixando Buenos Aires às escuras e provocando um verdadeiro caos em suas principais avenidas.
Bem político – Pires acredita que o principal problema da Argentina – e que se espera que o Brasil não vá pelo mesmo caminho – é que o governo tende a tratar o setor elétrico como um bem político, e não econômico. "No curto prazo, tratando o produto (energia) como um bem político, os governos acabam agradam a população, já que todos querem energia barata. O setor, no entanto, sofre graves consequências no médio e longo prazo”, afirmou.
Ele explicou que, ao contrário dos Estados Unidos e da Europa, onde as redes são mais consolidadas, os países latino-americanos ainda carecem de muito investimento na área – basta ver que suas pujantes economias exigem cada vez mais energia elétrica disponível. "É louvável o propósito de diminuir a tarifa para estimular a indústria, mas a forma como isso foi feito e o tamanho do corte de receita proposto estão errados”, alertou.
Pires concorda que a população já pagou pela amortização de grande parte dos ativos do segmento e que, portanto, há espaço para baixar preços. Contudo, foi enfático em dizer que houve exagero da parte do governo. "A redução dos contratos é tão grande e as indenizações tão baixas que vão comprometer os investimentos e a própria manutenção dos ativos", criticou.
Custos ignorados – Relatório da equipe de análise econômica do banco Santander, enviado aos clientes em 9 de novembro, apontou falhas nos cálculos do Planalto. De acordo com o documento, aparentemente foram considerados apenas os custos diretos dos ativos cujos contratos devem ser renovados antes do prazo. Ao calcular as novas tarifas e as indenizações que oferecerá, o governo, ao que tudo indica, ignorou custos administrativos e com seguros, os quais representam, por exemplo, 50% dos custos das geradoras.
O Santander citou como exemplo a somatória dos custos totais da Companhia Energética de São Paulo (Cesp) de 13,76 reais por megawatt-hora (MWh). O governo, no entanto, propôs uma tarifa de 6,74 reais para O&M (operação e manutenção), ou seja, 51% menor. O valor indicado pela presidente Dilma e sua equipe aproxima-se bastante da soma restrita dos custos diretos, que perfaz 5,21 reais. Se for isso, o estado estaria acenando com uma margem bem reduzida para a Cesp – condição que, ainda assim, seria perigosa na visão dos analistas Márcio Prado, Danilo Vitti e Maria Carolina Carneiro, que assinam o relatório.
"Acreditamos que, sob os termos atuais, a MP pode ser um ‘tiro no pé ‘ do governo, podendo levar, de forma não intencional, a consequências como alta de preços, tanto para residências quanto para a indústria, baixos investimentos e riscos regulatórios e operacionais mais altos”, diz o Santander. O relatório destacou também que a renovação dos contratos diminui, em média, o preço de geração (analisando as principais companhias) em 73%, passando de 100 reais para 27,44 reais por MWh. A medida corta ainda em 70% a receita de transmissoras – valores entre dez e vinte pontos porcentuais maiores que o esperado pelo mercado.
"Não vemos nenhuma razão econômica para as companhias aceitarem os novos termos das concessões", disse o banco espanhol. A avaliação de seus analistas, portanto, é que os acionistas das empresas – exceto quando este é o próprio governo federal no caso da Eletrobras – recusarão a atual proposta, operando seus ativos até o vencimento dos contratos. Ficaria em aberto a possibilidade de concorrerem em futuros leilões para tentar continuar a operá-los.
Base errada – Outra crítica frequente dos agentes do setor elétrico é a própria decisão do governo de obter a maior parte do desconto do preço da energia via renovação de contratos de concessão. Em outras palavras, o Planalto decidiu deixar de lado eventuais mudanças nos impostos federais e estaduais (PIS/Cofins e ICMS) que juntos representam pouco mais de 30% das contas de luz. Dos 20,2% de desconto médio na fatura prometidos pela presidente Dilma Rousseff em setembro, apenas sete pontos porcentuais virão da supressão e remanejamento de encargos setoriais (Conta de Desenvolvimento Energético, Conta de Consumo de Combustíveis e Reserva Global de Reversão). O restante terá o "bolso" das empresas como origem.
Na última quarta-feira, o secretário de Acompanhamento Econômico do Ministério da Fazenda, Antonio Henrique Silveira, afirmou, no entanto, que o governo está empenhado em fazer uma ampla reforma do PIS/Cofins. Por isso, teria optado por não mexer nessas contribuições na MP nº 579.
A mudança no ICMS, por sua vez, é mais complexa porque envolve perda de receitas estaduais. Mesmo sem ter incluído um corte deste tributo na MP, os governadores já reclamam que perderão parte de sua arrecadação. A razão é simples. Com uma conta de luz mais barata em 2013, reduz-se a base de tributação de ICMS e os estados devem passar automaticamente a recolher menos.
Mauricio Tolmasquim, presidente da Empresa de Pesquisas Energéticas (EPE) – estatal ligada ao Ministério de Minas e Energia, cuja função é munir o governo de estudos para o planejamento de longo prazo do setor –, disse ao site de VEJA que o cálculo das novas tarifas que serão pagas às concessionárias que aderirem à renovação já inclui margem de lucro de 10%. "Todos já sabiam que ia terminar a concessão. O governo deu uma opção a elas [às empresas] para devolverem os ativos e continuar na operação por mais 30 anos. Cabe a elas escolher o que fazer agora", destacou. Para ele, quanto antes a conta de energia for reduzida, melhor para o país, uma vez que diminui o ‘custo Brasil’ e ajuda a indústria nacional.
Pressa – Empresários, advogados e consultores do setor também reclamam da pressa com que Dilma Rousseff tem tratado a questão, praticamente obrigando as companhias a assinarem termos de renovação sem que, ao menos, saibam se a MP ficará como está ou terá modificações. “Isso dá uma insegurança jurídica muito grande para o próprio gestor e também para o investidor”, disse o advogado David Waltenberg, sócio fundador da Advocacia Waltenberg, e que já foi gerente jurídico de várias grandes empresas do ramo de energia.
A despeito das cobranças da presidente, a MP está Congresso, que está fazendo emendas ao texto e realizando audiências públicas. Perspectiva de votação há somente para o ano que vem. Nelson Fonseca Leite, presidente da Associação Brasileira dos Distribuidores de Energia Elétrica (Abradee), relatou ao site de VEJA que a entidade está justamente em conversas com parlamentares para tratar de questões que precisam de aperfeiçoamento.
Enquanto isso, algumas empresas explicitam seu descontentamento com as propostas. A Cemig foi a primeira, ao deixar de fora da renovação três de suas usinas: São Simão, Jaguara e Miranda. A Companhia de Transmissão de Energia Elétrica Paulista (Cteep), foi a segunda. Seu Conselho de Administração recomendou a não renovação da concessão, que vence em julho de 2015, com base em estudo encomendado à Fundação Getúlio Vargas (FGV). Na terça-feira da semana passada, o secretário de Energia de São Paulo, José Aníbal, disse que a paulista Cesp também pode devolver as concessões ou ainda buscar uma solução jurídica para o impasse, alegando que o ‘rombo’ na receita é bilionário.
Contudo, o ministro da Fazenda, Guido Mantega, foi enfático em entrevista ao jornal Valor Econômico na semana anterior, ao defender que o Brasil não pode esperar para reduzir tarifas e que o governo fará de tudo para aprovar a MP, garantindo os 20,2% de desconto na conta de luz prometidos pela Presidência da República. Ele ainda desafiou os reclamantes a apontar onde há quebra de contrato na MP.
Por outro lado, a Eletrobras foi a primeira a mostrar-se a favor da renovação. Sua diretoria aprovou nota técnica que valida a renovação antecipada. A estatal federal fará assembleia de acionistas em 3 de dezembro para deliberar sobre o assunto. Apesar de a expectativa ser de renovação, os demais acionistas estão reclamando: o representante dos minoritários no Conselho de Administração da empresa, José Luiz Alqueres, renunciou ao cargo e disse que as medidas do governo têm destruído 'brutalmente' o valor da companhia, por não considerarem aspectos da realidade de mercado.
As discussões, portanto, prosseguem e as empresas clamam para serem ouvidas. Resta agora para o governo o desafio de encontrar um 'ponto ótimo' da reforma, que cumpra o nobre propósito de reduzir de energia, mas, ao mesmo tempo, crie condições para incentivar investimentos no setor.
Enquanto isso, na Argentina, as trevas
Após o período militar (1976-83), a Argentina atravessou um período de grave crise econômica, hiperinflação e crescimento da dívida pública. O quadro se arrastou até 1989, quando, com a eleição do presidente Carlos Menem (1989-1999), a Casa Rosada adotou uma política de ajuste fiscal, abertura financeira e comercial, e licitações de estatais de serviços básicos. O processo de privatização do setor elétrico, com exceção da central nuclear, alcançou primeiramente as companhias federais de geração e, num segundo momento, as de distribuição das províncias.Os argumentos para justificar a medida foram a deterioração financeira das empresas; a queda da qualidade dos serviços e a crise de oferta provocada pela redução dos investimentos estatais no ramo; a corrupção e má administração das companhias; e a baixa inovação. Por essas razões eram constantes os apagões e racionamentos no país. A concessão à iniciativa privada ajudou a melhorar, de forma temporária, este quadro.
Em 2003, Néstor Kirchner assumiu o comando do país e o setor elétrico passou a sofrer maior ingerência governamental. Com tarifas congeladas, queda de faturamento, políticas de subsídios estatais e minimização do poder decisório das empresas, o quadro voltou a se deteriorar. Hoje, o país vive seu quarto ano seguido de apagões, tem um parque energético sucateado e as finanças das companhias estão estranguladas – visto que a alta dos custos não é compensada pelas tarifas nem pelos subsídios. Há, por fim, constante medo de estatização desde que a atual presidente Cristina Kirchner – que dá continuidade à política de seu marido, morto em 2010 – optou por expropriar neste ano a petroleira YPF da espanhola Repsol justamente com o argumento de que o antigo controlador investia pouco.
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