Embora tente mostrar
credibilidade por meio de discurso, o governo vem antecipando dividendos
e créditos de empresas para engordar as contas públicas
Talita Fernandes
(Evaristo Sa/AFP)
Às vésperas do anúncio de um novo corte orçamentário, que tem como um
dos principais objetivos garantir o cumprimento da meta de superávit
primário, de 2,3% do Produto Interno Bruto (PIB), a presidente Dilma
Rousseff insiste em dizer que o país tem robustez fiscal e que a
economia tem ganhado um viés pessimista que não lhe convém. Contudo, os
números mostram exatamente o contrário. Devido a uma política fiscal
expansionista, as contas se deterioraram e o governo tem usado manobras
pouco transparentes para conseguir cumprir a meta de superávit. Trata-se da perniciosa tarefa de
torturar os números até que eles mostrem o que o governo, de fato, quer mostrar.
Em reunião da Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social (CDES),
realizada na manhã de quarta-feira, a presidente afirmou que a situação
está '
sob controle',
especialmente quanto às contas públicas e à inflação. "É incorreto
falar em descontrole da inflação ou das despesas do governo. É
desrespeito aos dados, à lógica, para dizer o mínimo. A informação
parcial, da forma como muitas vezes é explorada, confunde a opinião
pública e visa criar um ambiente de pessimismo que não interessa a
nenhum de nós", disse Dilma.
Se as contas estivessem tão saudáveis como insiste a presidente em seu
discurso, o governo não precisaria anunciar um novo contingenciamento de
Orçamento para conseguir chegar ao final do ano com algum superávit. O
anúncio do corte de gastos está previsto para a próxima segunda-feira - e
a expectativa é de que cerca de 15 bilhões de reais sejam
contingenciados. O objetivo é tentar resgatar alguma credibilidade
fiscal, melhorar as contas públicas e, consequentemente, a inflação.
O superávit primário consiste no saldo positivo da diferença entre a
receita do setor público consolidado (formado pelos governos federal,
estadual e municipal, Previdência Social e Empresas Estatais) e suas
despesas. Essa economia é usada para o pagamento dos juros da dívida
pública. Ou seja, quanto mais o governo "economiza" gastos, mais ele
paga juros e menor fica a dívida. A deterioração da meta pode, então,
fazer com que a redução do endividamento fique comprometida - e pior,
pare de cair. O que faz o governo ao usar a chamada 'contabilidade
criativa' é fazer com que a economia para pagar os juros seja um mero
efeito contábil, e não um esforço fiscal real. Assim, os números mostram
aquilo que a equipe econômica deseja - e deixam de representar a
realidade.
Tortura dos números - A presidente Dilma não inventou a
contabilidade criativa, mas vem sendo uma usuária extrema dessa
técnica, desde que passou a chancelar inúmeros artifícios contábeis
determinados pelo Ministério da Fazenda para engordar a conta do
superávit sem que ajustes severos nos gastos públicos sejam feitos.
Por meio de decretos e medidas provisórias, o governo vem usando o
Tesouro Nacional e as empresas públicas para melhorar as contas. Apenas
neste ano, foram quatro medidas provisórias (MP) e um decreto para
garantir manobras fiscais que já envolvem, pelo menos, a Caixa Econômica
Federal, o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Sustentável
(BNDES) e a usina de Itaipu. (
Confira lista de manobras).
Para garantir a melhoria nas contas, o governo sangra o caixa de órgãos
estatais por meio da antecipação de dividendos, como fez com o BNDES, e
dá títulos da dívida pública (emitidas pelo Tesouro) em troca. Dessa
forma, a União embolsa a receita com dividendos e o gasto com a emissão
de títulos fica para o futuro, já que aparece em forma de títulos da
dívida mobiliária, com vencimento para os próximos anos. Com isso, a
receita da União aumenta, facilitando o cumprimento da meta.
Uma outra manobra feita este ano foi a antecipação de créditos da usina
de Itaipu. Este ano, o governo autorizou duas ações que utilizaram
créditos da usina antecipadamente. Uma delas, de 511 milhões de reais em
créditos para o BNDES e outra de
1,4 bilhão de reais,
autorizada em 11 de junho pelo ministro da Fazenda, Guido Mantega. Para
compensar o adiantamento desse montante, o pagamento poderá ser feito
com títulos públicos ou por ações de empresas de sociedade anônima que
estão na carteira do BNDES. Essas medidas foram autorizadas pelas MPs
600, de dezembro de 2012, e
618, de maio deste ano. (
Veja lista)
A utilização do BNDES para essas transações tem prejudicado o banco de
fomento. Dados extraídos do Tesouro Nacional e apresentados pelo
economista Felipe Salto, da Tendências Consultoria, mostram que entre o
repasse de dividendos do BNDES para a União vem crescendo muito nos
últimos anos. O valor repassado passou de 923,6 milhões de reais em 2007
para 12,93 bilhões de reais em 2012.
De acordo com um levantamento feito pela ONG Contas Abertas com base no
Sistema Integrado de Administração Financeira do Governo Federal
(Siafi), bancos públicos e estatais anteciparam 3,8 bilhões de reais à
União apenas em junho. Os repasses à Caixa Econômica Federal (1,2 bilhão
de reais), ao Banco do Brasil (409,8 milhões de reais), ao BNDES (1,98
bilhão de reais) e à Eletrobras (195,5 milhões de reais), entre outras
instituições, foram feitos entre os dias 27 e 28 de junho, os dois
últimos dias úteis de junho para garantir o superávit do mês.
Petrobras — Apesar de não ser considerada uma medida
ilegítima por analistas, a adoção recente de uma nova medida contábil
pela Petrobras pode ajudar ainda mais as contas do governo. Com o dólar
avançando frente ao real, a empresa divulgou na última semana a adoção
de uma nova política de
hedge - uma operação que permite que
empresas exportadoras posterguem os efeitos da variação cambial. Tal
política é aplicada no Brasil por algumas multinacionais, mas não era
prática comum na Petrobras.
Ao reduzir o impacto cambial na dívida em dólar da empresa, a medida
também viabiliza o pagamento de dividendos ao Tesouro Nacional.
"Trata-se de uma medida legítima. Mas a Petrobras nunca precisou dela
antes. E se agora está precisando desses artifícios para conseguir
bancar a defasagem e os dividendos ao Tesouro, é porque as coisas
realmente não vão bem", afirma Pires.
Abatimentos — Outra medida alvo de críticas de
especialistas é o abatimento das desonerações e dos gastos com o
Programa de Aceleração do Crescimento (PAC). Esses abatimentos consistem
em contabilizar a renúncia fiscal com os setores desonerados e os
gastos com o PAC e o Minha Casa Minha Vida como investimentos, e não
como despesas. Desta forma, o esforço fiscal exigido do governo fica
ainda menor. Em decreto publicado em maio pelo Ministério do
Planejamento, Orçamento e Gestão e pela Fazenda, o governo prevê um
abatimento de 45 bilhões de reais de investimentos e desonerações.