Descentralização do poder
facilita gestão de cidades e aproxima eleitor de seus representantes.
Mas a falta de autonomia fiscal torna prefeituras dependentes
Gabriel Castro, de Brasília
Balneário Rincão (SC): 60% do orçamento são dos cofres da União
(Divulgação)
Com o aval do Congresso,
188 municípios podem ser criados nos próximos meses. O projeto que
retoma a autorização para a emancipação de novas cidades passou pela
Câmara e pelo Senado e agora depende apenas da sanção presidencial. A
decisão dos parlamentares trouxe à tona um debate relevante que envolve,
de um lado, a importância da descentralização dos poderes e, do outro, a
necessidade de parcimônia nos gastos públicos. Mas, na prática, os
riscos são maiores do que os benefícios.
O primeiro e alarmante problema surge logo de cara: os gastos com a
implementação da máquina administrativa das novas prefeituras podem
chegar a 9 bilhões de reais mensais. Em tese, as novas prefeituras não
devem onerar a União porque a divisão de municípios leva a uma
redistribuição automática do Fundo de Participação dos Municípios (FPM) -
hoje, de 60 bilhões de reais por ano. Mas a verdade é que, junto com as
novas cidades, abrem-se novas oportunidades para desvios de recursos
públicos. É uma questão matemática: quanto mais gente põe a mão no
dinheiro, maiores as chances de desperdício.
Além disso, no médio prazo, o aumento no número de municípios acaba
levando o governo federal a ampliar a carga tributária para cobrir
perdas das cidades que forem desmembradas. "O bolo é um só. Para bancar
os novos municípios sem tirar dinheiro das prefeituras é preciso
aumentar o bolo, que é a carga tributária", diz Guilherme Mercês,
gerente de Economia e Estatística da Federação das Indústrias do Rio de
Janeiro (Firjan).
Anualmente, a entidade faz um minucioso estudo sobre a situação
fiscal dos municípios. A pesquisa publicada neste ano, com base nos
dados de 2011, mostrou que 4.328 prefeituras (83,8% do total) não
conseguiram produzir nem 20% dos recursos que gastaram. O resto da conta
foi paga pela União, especialmente por meio do FPM - que, por sua vez,
tem como fonte o Imposto de Renda e o Imposto sobre Produtos
Industrializados (IPI).
No levantamento da Firjan, apenas 205 dos 5.570 municípios atingiram o
patamar de boa gestão - quando pelo menos 60% dos recursos do orçamento
são oriundos da arrecadação municipal. "A descentralização das
políticas públicas está longe de ser o problema. É a solução para que a
gente possa entender os problemas daquela localidade. A questão é se é
necessária uma estrutura administrativa e burocrática em cada cidade",
diz Guilherme Mercês.
Na década de 1990, as Assembleias Legislativas tinham poder para
votar pela criação de cidades sem qualquer critério. Resultado:
a chamada farra dos municípios multiplicou prefeituras parasitas, que
serviram para aumentar o número de currais eleitorais no país. Entre
1984 e 2000, 1.405 municípios ganharam autonomia no Brasil. Em 1996,
a falta de controle levou o Congresso a suspender os processos de
emancipação até que o processo fosse regulamentado por uma lei
complementar - o que acontecerá agora, com a proposta aprovada no
parlamento.
Do ponto de vista territorial, a expansão do número de prefeituras
não seria essencialmente ruim: a fragmentação do poder mantém o eleitor
próximo de seu representante e permite ao governante achar soluções
apropriadas para cada comunidade. O problema é que o peso da
administração pública e a falta de autonomia na arrecadação acabam por
sufocar as frágeis finanças municipais.
Plebiscito - O
projeto aprovado pelo Congresso dá passos importantes para evitar
abusos porque cria exigências que dão mais rigor ao processo de criação
de municípios: para ganhar autonomia, as cidades precisam cumprir
algumas exigências - inclusive populacionais. O número mínimo de
habitantes varia de acordo com a região. No Norte, onde a exigência é
menor, é preciso ter pelo menos 5.000 moradores para pleitear a
emancipação. Em todo o Brasil, essa norma adiou os planos de quase 900
cidades que buscavam a emancipação.
Também será preciso demonstrar viabilidade financeira para pagar ao
menos uma parte significativa das próprias contas. "Esse projeto é uma
vacina contra a proliferação de municípios inviáveis", diz o senador
Mozarildo Cavalcanti (PTB-RO), autor da proposta.
A lei estabelece ainda que a criação de municípios só ocorrerá após
um plebiscito que inclua também a população da cidade a ser desmembrada.
Por isso, o presidente da Confederação Nacional dos Municípios (CNM),
Paulo Ziukolski, não vê riscos de uma multiplicação de novas cidades
como consequência da lei aprovada pelo Congresso. Para ele, a regra é
impeditiva: “Na verdade, isso inviabiliza a criação de municípios, com
algumas exceções”, avalia ele.
Primeiros passos - Apesar da decisão de 1996 que
paralisou a criação de municípios, algumas cidades que já tinham
iniciado o processo de emancipação conseguiram sua autonomia nos últimos
anos - na maior parte dos casos, após batalhas judiciais. Uma delas foi
a de Balneário Rincão (SC). O município ganhou vida própria em janeiro
deste ano. Com seus 12 mil habitantes, a cidade ainda tenta se
desprender das cidades mais importantes da vizinhança. "Balneário Rincão
estava se tornando cidade-dormitório de Criciúma e Içara. A gente quer
romper essa tendência e focar no turismo", diz o prefeito da cidade,
Décio Góes (PT). Hoje, cerca de 60% do orçamento anual são bancados
pelos recursos federais.
Góes, que é ex-prefeito de Criciúma e foi cassado em 2004, admite as
dificuldades de fazer as finanças da cidade sustentáveis e diz que tem
se esforçado para manter a a máquina administrativa enxuta: "Tenho
experiência e estou fazendo as coisas de modo que possamos dar passos
seguros, que não tenham consequências ruins adiante", afirma.
A descentralização administrativa trazida pela criação de municípios é
positiva porque o cidadão fica mais próximo de seus representantes. O
Brasil tem exemplos evidentes de como o poder local é mal distribuído. A
cidade de Altamira (PA), que tem um território maior do que o da Grécia
e o da Suíça juntos, possui um distrito que fica 950 quilômetros
distante da prefeitura, o que inviabiliza uma gestão municipal
eficiente.
Mesmo áreas exclusivamente urbanas parecem extensas demais no Brasil.
Goiânia, por exemplo, tem cerca de 780 quilômetros quadrados - tanto
quanto Nova York e duas vezes mais do que a cidade da Filadélfia, que
tem uma população equivalente. Os Estados Unidos, com um território de
dimensões semelhantes ao do Brasil e uma população menos de duas vezes
maior, tem cerca de 36.000 administrações locais, equivalentes a
prefeituras. Mas, em muitas cidades pequenas, o poder é exercido por
cidadãos não remunerados - ao contrário do Brasil, em que a estrutura
mínima envolve prefeito e vice, secretários municipais e pelo menos nove
vereadores.
O modelo americano é fruto dos princípios federalistas de
descentralização do poder. E funciona. Mais uma prova de que o maior
problema do Brasil não é o número de cidades, e sim o excesso de
burocracia e a mão pesada da União, que pega para si a maior parte dos
tributos e deixa as prefeituras dependentes dos repasses federais.