A troca de insultos e ameaças entre parlamentares leva o senado a seu pior nível na história, praticamente elimina a possibilidade de punições e aponta o tom que terá a campanha eleitoral do ano que vem.Também conhecido como a Câmara Alta, o Senado, que deveria ser um dos pilares do Estado Democrático de Direito, desceu ao patamar mais degradante de toda a sua história. Nas últimas semanas, líderes partidários, ex-governadores de Estado e até ex-presidentes se desnudaram de seus mandatos parlamentares para vestir o figurino dos cavaleiros do apocalipse.
O plenário, que deveria ser o palco dos grandes debates de interesse nacional, se transformou T em um deplorável cenário do embate de conflitos pessoais e partidários. Discursos acalorados e ameaças sem disfarces que caberiam melhor na boca de moleques de rua do que em homens bem trajados foram transmitidos para o País e o que o brasileiro assistiu foi a um vergonhoso espetáculo de troca de acusações mútuas, capaz de mostrar que todos se benefi- ciam do bem público.
Poucos escaparam da derrocada ética e o decoro parlamentar virou letra morta. Não houve socos e pontapés, mas o Senado foi a nocaute. Num raro momento de lucidez, em meio à grave crise moral, o senador Demóstenes Torres (DEM-GO) fez um desabafo que sintetiza o sentimento da nação: "Apodreceram os senhores senadores. A Casa está desmoralizada, com seus homens desmoralizados pelos fatos", afirmou.
Ao eleitor a quem até a abertura das urnas no próximo ano não resta mais a fazer senão acompanhar perplexo até onde pode chegar o Parlamento, fica a convicção de que por trás das agressões não está a busca pela retomada da moralidade ou da ética, mas a certeza de que ninguém será punido. O que aconteceu para o Senado chegar tão baixo? "A nação está estarrecida com esses fatos. Cada dia que você acha que chegou ao fundo do poço, vê que o fundo do poço é mais embaixo", avalia o cientista político Antônio Lavareda.
Na reabertura dos trabalhos legislativos, na segunda-feira 3, o plenário do Senado foi palco da primeira baixaria. De um lado, o grupo favorável à permanência de José Sarney (PMDB-AP) na presidência da Casa. De outro, a ala disposta a tudo para apeá-lo do cargo. No rastro de um discurso do senador Pedro Simon (PMDB-RS), pedindo a renúncia de Sarney, o grupo liderado por Renan Calheiros (PMDB-AL) reagiu com virulência.
Com os olhos esbugalhados, fora de órbita e exibindo seu descontrole colérico, o senador Fernando Collor (PTB-AL), reencarnou o estilo "bateu, levou", da época em que presidiu o Brasil, entre 1990 e 1992, antes de ter o mandato cassado. De dedo em riste, Collor mandou Simon engolir as palavras, ameaçando revelar episódios que o deixariam em apuros. "São palavras que não aceito! Quero que o senhor as engula e as digira como achar conveniente", esbravejou.
"Evite pronunciar meu nome, porque da próxima vez que tiver que pronunciar o seu, eu gostaria de relembrar alguns fatos e momentos extremamente incômodos para V. Excelência." Ao que Simon respondeu: "Fale agora!" "Falarei quando for oportuno", retrucou Collor, que permaneceu, até o fim do discurso de Simon, encarando-o de forma ameaçadora, sem desviar o olhar. No dia seguinte, Simon disse à ISTOÉ que não se sentiu ameaçado de morte, diante de antecedente histórico da família de Collor (leia reportagem à pág. 40), mas admitiu ter sentido medo.
"Foi assustador, saía fogo dos olhos do senador Fernando Collor ali logo embaixo de mim. E eu não falei nada demais. Quando vi, ele entrou completamente transtornado", lembrou Simon, que fez um questionamento formal ao senador do PTB para que ele esclarecesse o que quis dizer em plenário.
Na terça-feira 4, cinco partidos voltaram a pedir a renúncia de Sarney. O porta-voz da iniciativa foi o líder do PSDB, senador Arthur Virgílio (AM). "Senador José Sarney, case-se com a sua biografia. Deixe o cargo. Esse mandato não representa nada para V. Excelência", desafiou. À noite, numa reunião no gabinete da presidência, Renan Calheiros, Gim Argello (PTB-DF) e Fernando Collor entenderam que aquele era o momento mais propício para um novo discurso de Sarney.
Em casa, ao lado do advogado Eduardo Ferrão, Sarney optou por um pronunciamento técnico e passou em revista cada palavra do discurso feito na quarta-feira 5. Paralelamente, a pizza já assava no forno do Conselho de Ética, colegiado onde 70% dos integrantes são alvo de inquéritos autorizados pelo Supremo Tribunal Federal (STF), réus em ações penais ou envolvidos com nepotismo e atos secretos nos últimos anos.
Com a maioria governista e presidido pelo senador Paulo Duque (PMDB-RJ), o Conselho iniciara seus trabalhos disposto a arquivar os processos contra Sarney. A sessão foi interrompida para que todos acompanhassem o discurso do presidente do Senado no plenário. Com a ajuda de power point, Sarney tentou esclarecer as denúncias. Classificou-as como "menores", baseadas em "recortes de jornais", e descartou o afastamento do cargo.
Cometeu contradições, principalmente em relação à contratação de amigos e parentes. Seu pronunciamento, sem citar os adversários, serviu para que o clima de acordão prevalecesse. Terminado o discurso, o Conselho de Ética arquivou três denúncias e uma representação das dez ações que pediam abertura de processo para cassação do mandato de Sarney. Vieram novos arquivamentos depois."Pressionado pelos filhos, ele passou a administrar a política como se fosse uma propriedade de sua família, a casa dos Sarney" Edson Vidigal, ministro do STJ e ex-assessor jurídico de Sarney
A eleição de José Sarney para o governo do Maranhão em 1965 foi recebida como um sopro de renovação na política brasileira. Aos 36 anos, Sarney pertencia à ala bossa-nova da UDN e cometera a proeza de derrotar a oligarquia. Meio século depois, Sarney passou de esperança a vilão nacional e se vê acusado das mesmas práticas e vícios que condenou.
Mudaram os tempos ou mudou Sarney? Para quem pertenceu ao grupo mais próximo do último coronel da política, e hoje engorda o bloco de seus inimigos, a resposta vem na ponta da língua: Sarney mudou para atender aos interesses da família. Com frequência cada vez maior, cita-se, no Maranhão, uma profecia do ex-senador Alexandre Costa, já falecido: "Sarney, tu vai te acabar na hora em que seus filhos crescerem e tiverem mandando em você." Os ex-amigos de Sarney não se surpreendem com nada do que está acontecendo.
O ex-presidente do Superior Tribunal de Justiça, Edson Vidigal, que acompanhou o ex-presidente desde a década de 60, diz que "os filhos de Sarney escantearam os antigos parceiros do pai e montaram uma rede de poder e influência nefasta nas prefeituras e demais instituições estaduais e até federais." Ou seja, "usam a mesma moeda do senador Vitorino Freire", o coronel da política maranhense que foi derrotado por Sarney na década de 60.
"Pressionado pelos filhos, ele passou a administrar a política como se fosse A uma propriedade de sua família, a casa dos Sarney", explica Vidigal. Com a entrada dos filhos na política, aos poucos, os amigos de longa data tornaram-se inimigos ferozes. Esse foi o caso do engenheiro José Reinaldo Tavares, que galgou vários cargos públicos pelas mãos de Sarney, desde secretário de Estado até ministro dos Transportes em 1986, quando o amigo chegou à Presidência da República. Para José Reinaldo, que governou o Maranhão de 2002 a 2006, os filhos Roseana e Fernando têm responsabilidade na derrocada da imagem de Sarney.
Todos os problemas, diz ele, começaram quando Sarney apostou em Roseana como sua sucessora política: "Ela não tem talento, não tem competência para isso." Sua opinião sobre Fernando também é ácida. "O Fernando, o homem dos negócios da família, acabou se metendo em confusão com essa coisa de confundir o público com o privado."
José Reinaldo acredita que Sarney, aos 79 anos, voltou à presidência do Senado para ajudar Fernando, sob investigação da Polícia Federal, e a filha Roseana, que lutava na Justiça para reverter o resultado da eleição para o governo do Maranhão. "O Sarney já disse que as circunstâncias o obrigavam a ficar mais tempo na política exatamente para defender a filharada", diz o ex-governador.Fiel escudeiro de Sarney por mais de três décadas, José Reinaldo explica que a família rompeu com ele em razão de um acordo que tinha fechado com o ex-presidente, mas que Roseana não respeitou. "Logo que assumi o governo, Sarney veio conversar e me disse: 'Quero ter uma grande alegria na vida, ter dois filhos no governo do Maranhão.'
E me pediu que apoiasse o Sarney Filho", narra. Roseana, porém, não aceitou o acordo. "Numa reunião com o pai, Roseana gritou e disse que quem tinha voto era ela. Depois passou a me hostilizar nos meios de comunicação da família." José Reinaldo conta que teve três reuniões com Sarney para reclamar das agressões, mas nenhuma providência foi tomada. Na terceira reunião, Reinaldo advertiu: "Vou tomar o meu caminho".
José Reinaldo explica que sua relação com a família Sarney piorou de vez quando, em 2005, ele cortou a publicidade do sistema de comunicações comandado por Fernando. "Hoje o Sarney tem muita raiva de mim e me chama de tudo que não presta", diz o ex-governador. No caso de Edson Vidigal, que foi assessor jurídico de Sarney na Presidência da República, o divisor de águas também foi a eleição de 2006. Até ali a amizade dos dois continuava forte. Tanto assim que, em 2004, Vidigal empregou a neta de Sarney, Maria Beatriz, como assessora internacional do STJ. Os atritos começaram quando Vidigal decidiu deixar a presidência do STJ para disputar o governo do Maranhão pelo PSB.
De início, Sarney não levou a sério. E chegou a brincar quando as intenções de voto em Vidigal passaram de 1% para 3%. "Puxa, Vidigal, você cresceu 300%", ironizou. Mas Vidigal conquistou 15% dos votos, contribuindo para o segundo turno entre Roseana e Jackson Lago. Opositor ferrenho dos Sarney, Lago ganhou a eleição com o apoio de Vidigal, que entrou para o rol de desafetos da família. "Desde a derrota de Roseana, eu e minha mulher, Eurídice, que foi secretária de Segurança do Jackson, passamos a ser atacados pelos veículos de comunicação dos Sarney", afirma. Mesmo em atos públicos, Sarney faz de tudo para evitar o cumprimento do ex-amigo.
Ao defender sua prole com unhas e dentes, Sarney ficou isolado na política do Maranhão. Hoje, suas amizades se reduzem às figuras do vice-governador João Alberto e do ministro de Minas e Energia, Edison Lobão. Muito pouco para quem, um dia, foi apontado como uma das grandes esperanças da política brasileira, principalmente no Nordeste. Na opinião de Vidigal, Sarney paga um preço alto por não ter seguido a própria intuição.
"Certa vez, no Palácio do Planalto, cercado de amigos, Sarney disse que não repetiria o erro de Napoleão Bonaparte. E explicou que Bonaparte não foi derrotado em Waterloo, mas sim pela família à qual premiou com cargos importantes por toda a Europa", lembra Vidigal. Meses depois, Roseana e seu marido, Jorge Murad, ocupavam postos no Palácio. Sarney, portanto, não deu ouvidos ao conselho do próprio Sarney.
Parecia que a crise no Senado caminhava para um desfecho e que ninguém seria punido por atos secretos que misturam público e privado e nepotismos de toda ordem. Mas na quinta-feira 6, novamente os interesses partidários e pessoais se impuseram. Numa retaliação às investidas do PSDB contra Sarney, Renan leu em plenário a representação do PMDB contra o líder tucano Arthur Virgílio por quebra de decoro. Há inclusive documento mostrando que despesas com a saúde da mãe de Virgílio foram pagas pelo Senado e recursos superiores a R$ 600 mil foram depositados na conta do senador.
Virgílio subiu à tribuna para relembrar as acusações feitas nos últimos anos contra o peemedebista. Foi o suficiente para o bate-boca de moleques voltar a ter espaço na Câmara Alta. O tucano Tasso Jereissati (CE) pediu para Sarney retirar das galerias uma pessoa que estaria ofendendo os líderes do PSDB. Renan reagiu."Essas crises acontecem por isso. É a minoria com complexo de maioria. Quer expulsar agora um cidadão que está aqui participando da sessão, que é uma sessão infelizmente histórica do Senado", disse, apontando o dedo para Tasso. Irritado, Tasso revidou: "Senador Renan, não aponte esse dedo sujo para cima de mim." "Dedo sujo infelizmente é o de V. Excelência. São os dedos dos jatinhos que o Senado pagou", disse Renan.
"Pelo menos era com o meu dinheiro, o jato é meu. Não é o jato que você anda dos seus empreiteiros. É meu, é meu, é meu!", devolveu o tucano. Neste momento, Renan, fora do microfone, chama Tasso de coronel de merda. "Eu coronel? Cangaceiro! Cangaceiro de terceira categoria!", rebateu Tasso. "Como brasileiro, fico muito triste ao me deparar com uma cena como essa. A coisa se acirrou a tal ponto que tudo se radicalizou e parece que isso não terá fim", afirma Maurício Corrêa, ex-senador, ex-ministro da Justiça e ex-presidente do Supremo Tribunal Federal. Horas depois do bate-boca, Sarney esforçou-se para dar uma justificativa em entrevista à ISTOÉ.
"Eles estavam jogando com o meu temperamento, mas a toda ação corresponde uma reação. E o senador Arthur Virgílio não para de nos insultar", disse Sarney, reconhecendo que o momento é lamentável. A crise do Senado é um trailler do que será a eleição de 2010. Ao escalar cavaleiros como Collor e Renan para lutar pela manutenção de Sarney no comando do Senado, o presidente Lula olha para a sucessão. Com a base aliada fortalecida, ganha a ministra da Casa Civil, Dilma Rousseff. A oposição trabalha com o mesmo horizonte.
Assumir o controle do Senado às vésperas da disputa pela Presidência da República é o pulo do gato. Além de brecar projetos de interesse do Executivo nos meses que antecedem à eleição, uma eventual saída de Sarney enfraqueceria os caciques hoje alinhados a Lula e poderia levar o PMDB para o colo de José Serra ou de Aécio Neves, ambos pré-candidatos do PSDB. Resta saber, porém, se o Senado conseguirá resgatar sua credibilidade após viver dias de briga de rua.
O nível hoje é tão rasteiro que até mesmo as interpretações políticas ficam comprometidas. "Tem que mudar um conjunto de atitudes, em relação ao que significa ser representante do povo num Parlamento moderno, de uma sociedade moderna, com moeda forte, em que o cidadão tem noção exata de quanto ele gasta na sua vida privada e pública", diz o antropólogo Roberto DaMatta. Nesse sentido, quem melhor poderá responder à crise serão os eleitores em 2010, quando 70% dos senadores deverão ir às urnas para renovar o mandato.
Caberá aos eleitores separar o joio do trigo. Se é que ainda há trigo nesse ambiente de terra arrasada. "A única certeza é a de que os atores não estão correspondendo a seus papéis", conclui DaMatta. Colaborou Hugo Marques (DF)O temor que o senador Pedro Simon (PMDB-RS) diz ter sentido quando estava no centro da mira do olhar do colega Fernando Collor tem razões históricas. Em 3 de dezembro de 1963, o senador Arnon de Mello, pai de Fernando Collor, sacou seu revólver na tribuna do Senado, durante um discurso. Disparou três tiros na direção do senador Silvestre Péricles, a cinco metros de distância.
Errou o alvo e matou o suplente de senador José Kairala, do Acre, com um tiro no peito. Naquele mesmo dia, Kairala devolveria a cadeira ao titular, senador José Guiomard. O filho da vítima se preparava para tirar uma foto de recordação do pai no plenário, quando os tiros foram disparados. O conflito foi resultado de uma disputa política que Arnon travou por muito tempo com o senador Silvestre.
No momento da tragédia, o Senado era presidido por Auro de Moura Andrade, que já tinha manifestado sua preocupação com o clima beligerante no plenário. Arnon avisara, antes dos disparos, que faria seu discurso olhando na direção de Silvestre, que ameaçara matá-lo. No enterro, o presidente João Goulart ouviu as lamentações da família de Kairala, que pedia Justiça. Mas ninguém foi punido pela tragédia.
O plenário, que deveria ser o palco dos grandes debates de interesse nacional, se transformou T em um deplorável cenário do embate de conflitos pessoais e partidários. Discursos acalorados e ameaças sem disfarces que caberiam melhor na boca de moleques de rua do que em homens bem trajados foram transmitidos para o País e o que o brasileiro assistiu foi a um vergonhoso espetáculo de troca de acusações mútuas, capaz de mostrar que todos se benefi- ciam do bem público.
Poucos escaparam da derrocada ética e o decoro parlamentar virou letra morta. Não houve socos e pontapés, mas o Senado foi a nocaute. Num raro momento de lucidez, em meio à grave crise moral, o senador Demóstenes Torres (DEM-GO) fez um desabafo que sintetiza o sentimento da nação: "Apodreceram os senhores senadores. A Casa está desmoralizada, com seus homens desmoralizados pelos fatos", afirmou.
Ao eleitor a quem até a abertura das urnas no próximo ano não resta mais a fazer senão acompanhar perplexo até onde pode chegar o Parlamento, fica a convicção de que por trás das agressões não está a busca pela retomada da moralidade ou da ética, mas a certeza de que ninguém será punido. O que aconteceu para o Senado chegar tão baixo? "A nação está estarrecida com esses fatos. Cada dia que você acha que chegou ao fundo do poço, vê que o fundo do poço é mais embaixo", avalia o cientista político Antônio Lavareda.
Na reabertura dos trabalhos legislativos, na segunda-feira 3, o plenário do Senado foi palco da primeira baixaria. De um lado, o grupo favorável à permanência de José Sarney (PMDB-AP) na presidência da Casa. De outro, a ala disposta a tudo para apeá-lo do cargo. No rastro de um discurso do senador Pedro Simon (PMDB-RS), pedindo a renúncia de Sarney, o grupo liderado por Renan Calheiros (PMDB-AL) reagiu com virulência.
Com os olhos esbugalhados, fora de órbita e exibindo seu descontrole colérico, o senador Fernando Collor (PTB-AL), reencarnou o estilo "bateu, levou", da época em que presidiu o Brasil, entre 1990 e 1992, antes de ter o mandato cassado. De dedo em riste, Collor mandou Simon engolir as palavras, ameaçando revelar episódios que o deixariam em apuros. "São palavras que não aceito! Quero que o senhor as engula e as digira como achar conveniente", esbravejou.
"Evite pronunciar meu nome, porque da próxima vez que tiver que pronunciar o seu, eu gostaria de relembrar alguns fatos e momentos extremamente incômodos para V. Excelência." Ao que Simon respondeu: "Fale agora!" "Falarei quando for oportuno", retrucou Collor, que permaneceu, até o fim do discurso de Simon, encarando-o de forma ameaçadora, sem desviar o olhar. No dia seguinte, Simon disse à ISTOÉ que não se sentiu ameaçado de morte, diante de antecedente histórico da família de Collor (leia reportagem à pág. 40), mas admitiu ter sentido medo.
"Foi assustador, saía fogo dos olhos do senador Fernando Collor ali logo embaixo de mim. E eu não falei nada demais. Quando vi, ele entrou completamente transtornado", lembrou Simon, que fez um questionamento formal ao senador do PTB para que ele esclarecesse o que quis dizer em plenário.
Na terça-feira 4, cinco partidos voltaram a pedir a renúncia de Sarney. O porta-voz da iniciativa foi o líder do PSDB, senador Arthur Virgílio (AM). "Senador José Sarney, case-se com a sua biografia. Deixe o cargo. Esse mandato não representa nada para V. Excelência", desafiou. À noite, numa reunião no gabinete da presidência, Renan Calheiros, Gim Argello (PTB-DF) e Fernando Collor entenderam que aquele era o momento mais propício para um novo discurso de Sarney.
Em casa, ao lado do advogado Eduardo Ferrão, Sarney optou por um pronunciamento técnico e passou em revista cada palavra do discurso feito na quarta-feira 5. Paralelamente, a pizza já assava no forno do Conselho de Ética, colegiado onde 70% dos integrantes são alvo de inquéritos autorizados pelo Supremo Tribunal Federal (STF), réus em ações penais ou envolvidos com nepotismo e atos secretos nos últimos anos.
Com a maioria governista e presidido pelo senador Paulo Duque (PMDB-RJ), o Conselho iniciara seus trabalhos disposto a arquivar os processos contra Sarney. A sessão foi interrompida para que todos acompanhassem o discurso do presidente do Senado no plenário. Com a ajuda de power point, Sarney tentou esclarecer as denúncias. Classificou-as como "menores", baseadas em "recortes de jornais", e descartou o afastamento do cargo.
Cometeu contradições, principalmente em relação à contratação de amigos e parentes. Seu pronunciamento, sem citar os adversários, serviu para que o clima de acordão prevalecesse. Terminado o discurso, o Conselho de Ética arquivou três denúncias e uma representação das dez ações que pediam abertura de processo para cassação do mandato de Sarney. Vieram novos arquivamentos depois."Pressionado pelos filhos, ele passou a administrar a política como se fosse uma propriedade de sua família, a casa dos Sarney" Edson Vidigal, ministro do STJ e ex-assessor jurídico de Sarney
A eleição de José Sarney para o governo do Maranhão em 1965 foi recebida como um sopro de renovação na política brasileira. Aos 36 anos, Sarney pertencia à ala bossa-nova da UDN e cometera a proeza de derrotar a oligarquia. Meio século depois, Sarney passou de esperança a vilão nacional e se vê acusado das mesmas práticas e vícios que condenou.
Mudaram os tempos ou mudou Sarney? Para quem pertenceu ao grupo mais próximo do último coronel da política, e hoje engorda o bloco de seus inimigos, a resposta vem na ponta da língua: Sarney mudou para atender aos interesses da família. Com frequência cada vez maior, cita-se, no Maranhão, uma profecia do ex-senador Alexandre Costa, já falecido: "Sarney, tu vai te acabar na hora em que seus filhos crescerem e tiverem mandando em você." Os ex-amigos de Sarney não se surpreendem com nada do que está acontecendo.
O ex-presidente do Superior Tribunal de Justiça, Edson Vidigal, que acompanhou o ex-presidente desde a década de 60, diz que "os filhos de Sarney escantearam os antigos parceiros do pai e montaram uma rede de poder e influência nefasta nas prefeituras e demais instituições estaduais e até federais." Ou seja, "usam a mesma moeda do senador Vitorino Freire", o coronel da política maranhense que foi derrotado por Sarney na década de 60.
"Pressionado pelos filhos, ele passou a administrar a política como se fosse A uma propriedade de sua família, a casa dos Sarney", explica Vidigal. Com a entrada dos filhos na política, aos poucos, os amigos de longa data tornaram-se inimigos ferozes. Esse foi o caso do engenheiro José Reinaldo Tavares, que galgou vários cargos públicos pelas mãos de Sarney, desde secretário de Estado até ministro dos Transportes em 1986, quando o amigo chegou à Presidência da República. Para José Reinaldo, que governou o Maranhão de 2002 a 2006, os filhos Roseana e Fernando têm responsabilidade na derrocada da imagem de Sarney.
Todos os problemas, diz ele, começaram quando Sarney apostou em Roseana como sua sucessora política: "Ela não tem talento, não tem competência para isso." Sua opinião sobre Fernando também é ácida. "O Fernando, o homem dos negócios da família, acabou se metendo em confusão com essa coisa de confundir o público com o privado."
José Reinaldo acredita que Sarney, aos 79 anos, voltou à presidência do Senado para ajudar Fernando, sob investigação da Polícia Federal, e a filha Roseana, que lutava na Justiça para reverter o resultado da eleição para o governo do Maranhão. "O Sarney já disse que as circunstâncias o obrigavam a ficar mais tempo na política exatamente para defender a filharada", diz o ex-governador.Fiel escudeiro de Sarney por mais de três décadas, José Reinaldo explica que a família rompeu com ele em razão de um acordo que tinha fechado com o ex-presidente, mas que Roseana não respeitou. "Logo que assumi o governo, Sarney veio conversar e me disse: 'Quero ter uma grande alegria na vida, ter dois filhos no governo do Maranhão.'
E me pediu que apoiasse o Sarney Filho", narra. Roseana, porém, não aceitou o acordo. "Numa reunião com o pai, Roseana gritou e disse que quem tinha voto era ela. Depois passou a me hostilizar nos meios de comunicação da família." José Reinaldo conta que teve três reuniões com Sarney para reclamar das agressões, mas nenhuma providência foi tomada. Na terceira reunião, Reinaldo advertiu: "Vou tomar o meu caminho".
José Reinaldo explica que sua relação com a família Sarney piorou de vez quando, em 2005, ele cortou a publicidade do sistema de comunicações comandado por Fernando. "Hoje o Sarney tem muita raiva de mim e me chama de tudo que não presta", diz o ex-governador. No caso de Edson Vidigal, que foi assessor jurídico de Sarney na Presidência da República, o divisor de águas também foi a eleição de 2006. Até ali a amizade dos dois continuava forte. Tanto assim que, em 2004, Vidigal empregou a neta de Sarney, Maria Beatriz, como assessora internacional do STJ. Os atritos começaram quando Vidigal decidiu deixar a presidência do STJ para disputar o governo do Maranhão pelo PSB.
De início, Sarney não levou a sério. E chegou a brincar quando as intenções de voto em Vidigal passaram de 1% para 3%. "Puxa, Vidigal, você cresceu 300%", ironizou. Mas Vidigal conquistou 15% dos votos, contribuindo para o segundo turno entre Roseana e Jackson Lago. Opositor ferrenho dos Sarney, Lago ganhou a eleição com o apoio de Vidigal, que entrou para o rol de desafetos da família. "Desde a derrota de Roseana, eu e minha mulher, Eurídice, que foi secretária de Segurança do Jackson, passamos a ser atacados pelos veículos de comunicação dos Sarney", afirma. Mesmo em atos públicos, Sarney faz de tudo para evitar o cumprimento do ex-amigo.
Ao defender sua prole com unhas e dentes, Sarney ficou isolado na política do Maranhão. Hoje, suas amizades se reduzem às figuras do vice-governador João Alberto e do ministro de Minas e Energia, Edison Lobão. Muito pouco para quem, um dia, foi apontado como uma das grandes esperanças da política brasileira, principalmente no Nordeste. Na opinião de Vidigal, Sarney paga um preço alto por não ter seguido a própria intuição.
"Certa vez, no Palácio do Planalto, cercado de amigos, Sarney disse que não repetiria o erro de Napoleão Bonaparte. E explicou que Bonaparte não foi derrotado em Waterloo, mas sim pela família à qual premiou com cargos importantes por toda a Europa", lembra Vidigal. Meses depois, Roseana e seu marido, Jorge Murad, ocupavam postos no Palácio. Sarney, portanto, não deu ouvidos ao conselho do próprio Sarney.
Parecia que a crise no Senado caminhava para um desfecho e que ninguém seria punido por atos secretos que misturam público e privado e nepotismos de toda ordem. Mas na quinta-feira 6, novamente os interesses partidários e pessoais se impuseram. Numa retaliação às investidas do PSDB contra Sarney, Renan leu em plenário a representação do PMDB contra o líder tucano Arthur Virgílio por quebra de decoro. Há inclusive documento mostrando que despesas com a saúde da mãe de Virgílio foram pagas pelo Senado e recursos superiores a R$ 600 mil foram depositados na conta do senador.
Virgílio subiu à tribuna para relembrar as acusações feitas nos últimos anos contra o peemedebista. Foi o suficiente para o bate-boca de moleques voltar a ter espaço na Câmara Alta. O tucano Tasso Jereissati (CE) pediu para Sarney retirar das galerias uma pessoa que estaria ofendendo os líderes do PSDB. Renan reagiu."Essas crises acontecem por isso. É a minoria com complexo de maioria. Quer expulsar agora um cidadão que está aqui participando da sessão, que é uma sessão infelizmente histórica do Senado", disse, apontando o dedo para Tasso. Irritado, Tasso revidou: "Senador Renan, não aponte esse dedo sujo para cima de mim." "Dedo sujo infelizmente é o de V. Excelência. São os dedos dos jatinhos que o Senado pagou", disse Renan.
"Pelo menos era com o meu dinheiro, o jato é meu. Não é o jato que você anda dos seus empreiteiros. É meu, é meu, é meu!", devolveu o tucano. Neste momento, Renan, fora do microfone, chama Tasso de coronel de merda. "Eu coronel? Cangaceiro! Cangaceiro de terceira categoria!", rebateu Tasso. "Como brasileiro, fico muito triste ao me deparar com uma cena como essa. A coisa se acirrou a tal ponto que tudo se radicalizou e parece que isso não terá fim", afirma Maurício Corrêa, ex-senador, ex-ministro da Justiça e ex-presidente do Supremo Tribunal Federal. Horas depois do bate-boca, Sarney esforçou-se para dar uma justificativa em entrevista à ISTOÉ.
"Eles estavam jogando com o meu temperamento, mas a toda ação corresponde uma reação. E o senador Arthur Virgílio não para de nos insultar", disse Sarney, reconhecendo que o momento é lamentável. A crise do Senado é um trailler do que será a eleição de 2010. Ao escalar cavaleiros como Collor e Renan para lutar pela manutenção de Sarney no comando do Senado, o presidente Lula olha para a sucessão. Com a base aliada fortalecida, ganha a ministra da Casa Civil, Dilma Rousseff. A oposição trabalha com o mesmo horizonte.
Assumir o controle do Senado às vésperas da disputa pela Presidência da República é o pulo do gato. Além de brecar projetos de interesse do Executivo nos meses que antecedem à eleição, uma eventual saída de Sarney enfraqueceria os caciques hoje alinhados a Lula e poderia levar o PMDB para o colo de José Serra ou de Aécio Neves, ambos pré-candidatos do PSDB. Resta saber, porém, se o Senado conseguirá resgatar sua credibilidade após viver dias de briga de rua.
O nível hoje é tão rasteiro que até mesmo as interpretações políticas ficam comprometidas. "Tem que mudar um conjunto de atitudes, em relação ao que significa ser representante do povo num Parlamento moderno, de uma sociedade moderna, com moeda forte, em que o cidadão tem noção exata de quanto ele gasta na sua vida privada e pública", diz o antropólogo Roberto DaMatta. Nesse sentido, quem melhor poderá responder à crise serão os eleitores em 2010, quando 70% dos senadores deverão ir às urnas para renovar o mandato.
Caberá aos eleitores separar o joio do trigo. Se é que ainda há trigo nesse ambiente de terra arrasada. "A única certeza é a de que os atores não estão correspondendo a seus papéis", conclui DaMatta. Colaborou Hugo Marques (DF)O temor que o senador Pedro Simon (PMDB-RS) diz ter sentido quando estava no centro da mira do olhar do colega Fernando Collor tem razões históricas. Em 3 de dezembro de 1963, o senador Arnon de Mello, pai de Fernando Collor, sacou seu revólver na tribuna do Senado, durante um discurso. Disparou três tiros na direção do senador Silvestre Péricles, a cinco metros de distância.
Errou o alvo e matou o suplente de senador José Kairala, do Acre, com um tiro no peito. Naquele mesmo dia, Kairala devolveria a cadeira ao titular, senador José Guiomard. O filho da vítima se preparava para tirar uma foto de recordação do pai no plenário, quando os tiros foram disparados. O conflito foi resultado de uma disputa política que Arnon travou por muito tempo com o senador Silvestre.
No momento da tragédia, o Senado era presidido por Auro de Moura Andrade, que já tinha manifestado sua preocupação com o clima beligerante no plenário. Arnon avisara, antes dos disparos, que faria seu discurso olhando na direção de Silvestre, que ameaçara matá-lo. No enterro, o presidente João Goulart ouviu as lamentações da família de Kairala, que pedia Justiça. Mas ninguém foi punido pela tragédia.
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