10 de jan. de 2014

Barbárie brasileira

Cenas chocantes de violência no Maranhão são resultado de dois fenômenos devastadores: a expansão do crime organizado para todo o País e a inépcia da família que governa o Estado há 45 anos

Josie Jeronimo
A cenas pavorosas de violência no Maranhão provocaram revolta e perplexidade, mas elas são acima de tudo o retrato de um velho fenômeno brasileiro: o crime organizado detentor de poderes sem limites. Mais do que isso: a criminalidade brutal ilustra a inépcia das autoridades. Elas falharam em conter, na década de 70, o aparecimento das primeiras facções em presídios do Rio, organizações que mais tarde se alastraram para as carceragens paulistas e depois, como uma epidemia, chegaram a inúmeros Estados. Tudo isso às vistas de governos de diversas colorações partidárias. Diversos fatores podem ser atribuídos à escalada da violência, mas o poder público, que deveria ser o escudo contra a criminalidade, teve um papel decisivo na disseminação do fenômeno. A estratégia de espalhar líderes do crime organizado para cárceres no Brasil inteiro não enfraqueceu as facções, como imaginaram os gestores da segurança, mas possibilitou a elas criar ramificações. O resultado está aí, nas imagens grotescas vindas do Maranhão.
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O Maranhão revelou-se campo fértil para criminosos graças ao estilo peculiar de seus governantes. Em 2002, a candidatura presidencial de Roseana Sarney foi implodida pela descoberta de R$ 1,3 milhão em dinheiro vivo no cofre de uma empresa de São Luis, a  Lunus, propriedade de sua família e de um empresário local, Luiz Carlos Cantanhede Nunes. Uma décadas depois, Cantanhede encontra-se no centro do colapso do sistema de segurança pública. Sempre amigo da família, é dono da Atlântica Segurança Técnica, empresa que já embolsou R$ 22,4 milhões do governo Roseana para prestar serviços terceirizados ao sistema carcerário. A abastada Atlântica não impediu a rebelião que produziu 59 mortos na penitenciária de Pedrinhas.
A família do ex-presidente José Sarney governa o Maranhão há 45 anos. Num Estado onde o culto à dinastia está em toda parte, vive-se sob um regime senhorial de poder sem paralelo no Brasil. O patriarca José Sarney chegou pela primeira vez ao governo de seu Estado nomeado pelos militares, em 1966. Desde então, a família asfixia a crítica e o debate a partir de um monopólio nas comunicações, com seis emissoras de tevê, dez de rádio e o jornal de maior circulação. Hoje, como ontem, o Estado continua nos últimos lugares nas estatísticas que medem o bem-estar da população brasileira.
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Sarney foi  amigo dos generais quando eles governavam o País. Tornou-se presidente da República na democratização e desde 2002 é aliado fiel e insaciável de verbas e cargos do condomínio Lula-Dilma. Embora tenha permitido ampliar os poderes da família, essa situação trouxe poucos benefícios para o conjunto da população. A soma de oportunidades perdidas é enorme. O Brasil conheceu o “milagre” dos generais, o Real de Fernando Henrique, a expansão da classe média com Lula, mas o Maranhão de Sarney e do amigo Cantanhede não viu. Apenas nos últimos 20 anos, 360 dos 1.035 convênios do Estado com o governo federal foram perdidos por erros administrativos.
Nesse mundo fechado, a rebelião dos criminosos encarcerados em  Pedrinhas produziu horrores, entre eles corpos dilacerados e decapitados. Atacados por bandidos que cumpriam ordens de chefes de bando instalados no interior do presídio, cidadãos das ruas de São Luis passaram dias tentando escapar de chamas no interior de ônibus. Nem todos conseguiram fugir. Uma menina de 6 anos, Ana Clara Santos Souza, morreu com 90% do corpo queimado, depois de sua mãe implorar aos criminosos que poupassem suas vidas. Na semana de labaredas humanas e cabeças cortadas, viveu-se uma típica situação de Maria Antonieta, a célebre rainha fora do mundo que, quando o povo foi às ruas de Paris protestar pela falta de pão, recomendou que comesse brioches: a governadora Roseana lançou uma licitação de R$ 1,3 milhão para a cozinha do Palácio dos Leões, que inclui, entre outras iguarias, 80 quilos de lagosta.
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HORROR
O velório de Ana Souza, 6 anos, vítima do incêndio no ônibus; suspeitos de
incitarem a onda de violência; e policiais diante do Complexo Penitenciário de
Pedrinhas (da esq. para a dir.): o crime se organizou graças ao Estado omisso
A violência dos últimos dias ilustra o aparecimento, no Maranhão, de uma escola de crime que parecia exclusiva de São Paulo e Rio. Num caso que já fora denunciado em 2011, e que jamais recebeu a devida atenção, funciona em São Luis um braço do PCC, facção que atua nos presídios paulistas. Se a falta de segurança é um problema grave no País inteiro, ela piorou no Maranhão, graças a uma política de segurança suicida. Cada vez mais omisso, o  Estado possui hoje o menor efetivo policial per capita de toda a Federação.
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Uma das bases da política de segurança é a terceirização dos serviços de vigilância de presídios. Ela  permite receitas milionárias a empresas que dirigem o sistema, como a Atlântica do velho amigo Cantanhede, partilhando uma verba de ­R­$ 9­0­ milhões, mas reserva uma ninharia para o trabalho essencial de lidar com criminosos que comandam um universo paralelo, violento e organizado. Enquanto o salário de um agente penitenciário do Estado fica em R$ 5 mil mensais, a verba disponível para um terceirizado se limita a R$ 800 por mês, quantia que não permite empregar cidadãos com um preparo mínimo para lidar com situações  de violência e  alto risco. As brechas do sistema de segurança transformaram o Estado “numa terra fértil para o êxodo de criminosos,” afirma Lucylea França, estudiosa de segurança pública da Universidade Federal do Maranhão. Para a professora, até hoje o Maranhão vive numa “ditadura criada nos anos 60, o que deixou o Estado exposto ao crime organizado.”
Como já acontece nos Estados do Sul, no Maranhão o tráfico de drogas já é hoje a principal causa da prisão de mulheres e a violência avança em escala crescente: o número de homicídios aumentou 61% nos últimos três anos. Nesse ambiente, ninguém tem paz, nem o secretário de Segurança, um veterano policial, Aluísio Mendes, grande amigo da família, obviamente. Mendes costuma deslocar-se pela cidade sob a proteção de vários círculos de guarda-costas, num espetáculo que causa estranheza e temor e que os brasileiros só costumam ver em filmes sobre a guerra perdida de policiais contra traficantes na fronteira do México com os Estados Unidos.
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