22 de abr. de 2012

Um golpe argentino

Em um surto nacionalista, a presidenta Cristina Kirchner expropria ações da petroleira YPF que pertenciam aos espanhóis da Repsol, alimenta o crescente ufanismo do país e provoca revolta na comunidade internacional

Mariana Queiroz Barboza


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UFANISMO
Militantes peronistas tomaram as ruas de
Buenos Aires após o anúncio da presidenta
Ao anunciar a reestatização da petroleira YPF, em um salão da Casa Rosada, a presidenta da Argentina, Cristina Kirchner, viveu um momento de glória. Assim que o discurso terminou, governadores das províncias, militantes peronistas e até políticos de oposição se uniram em uma calorosa sinfonia de aplausos. “Somos o único país da América Latina, e eu diria quase do mundo, que não maneja seus recursos naturais”, disse Cristina. Em seguida, como se presenciassem uma emocionante partida de futebol da seleção, os presentes levantaram os braços e entoaram cânticos nacionalistas – cena que parecia deslocada no tempo, por lembrar os excessos ufanistas do passado. Horas depois, manifestantes foram à Plaza de Mayo comemorar o surpreendente projeto de lei. Entre outros absurdos, ele prevê a expropriação de 51% das ações da YPF que pertenciam aos espanhóis da Repsol. A onda de patriotismo que varre a Argentina, que nos últimos meses reabriu a discussão sobre a soberania das Ilhas Malvinas, escolheu agora o capital estrangeiro como novo alvo.
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De uma nação autossuficiente para um país importador de petróleo, a Argentina comprou no exterior quase US$ 10 bilhões em combustíveis no ano passado. E a culpa foi creditada na conta da Repsol. “Esse ato não ficará impune”, disse Antonio Brufau, presidente da companhia espanhola. Principal investidor estrangeiro na Argentina, a Espanha aplicou no país US$ 23,2 bilhões em 2010 (último dado disponível) e historicamente desempenha papel importante no comércio bilateral. Como a Argentina sofre com a desconfiança do mercado internacional por causa do calote da dívida pública em 2001, a busca por um superávit comercial é obsessão do governo. Nesse sentido, o saldo entre os dois países favorece a Argentina, que, em 2011, exportou US$ 1,4 bilhão a mais do que importou. Assim, uma das formas de atingir os hermanos seria restringir as importações, com o apoio da União Europeia. A segunda alternativa é pelo confronto direto no Banco Mundial. A Repsol, que perderá 25% de sua receita sem a filial argentina, sinalizou que entrará na Justiça para obter uma compensação.
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Após uma avaliação de seus ativos no país, em que considera o valor de cada ação da YPF US$ 46,55 (agora vale menos de um terço disso), a Repsol quer um pagamento de US$ 10,5 bilhões. Se o governo argentino aceitasse essa condição, a forma com que estatizou a companhia seria esquecida pelos espanhóis. Tudo indica, no entanto, que o valor pago estará bem abaixo do requisitado. “Bobos são os que pensam que o Estado deve ser estúpido e cumprir o que diz a empresa”, disse o vice-ministro de Economia argentino e mentor do projeto de expropriação, Axel Kicillof. O jovem economista de 41 anos e olhos azuis tem cada vez mais poder dentro do governo e parece cultivar um discurso agressivo com a mesma dedicação que o faz com sua farta costeleta. Segundo ele, a YPF é dona de uma dívida de US$ 9 bilhões, além de passivos ambientais. Sobre o presidente da Repsol, afirmou: “É um empresário que aplica políticas inescrupulosas. O que fez foi uma extorsão. Operava para que os preços do petróleo subissem e baixou a produção porque acreditava que os preços internacionais aumentariam.”
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Os pesquisadores do setor energético pensam de forma diferente. “O controle interno do preço do petróleo é o maior problema para as empresas, pois cria uma situação artificialmente mantida pelo governo, prejudicando a rentabilidade e desestimulando os investimentos”, diz Carlos Belem, diretor da consultoria IES, especializada em energia. “A conta não fecha.” De acordo com Belem, há mais de dez anos os geólogos já alertavam a Argentina de que a curva de consumo ultrapassaria a da produção em pouco tempo. Desde 2001, a produção de petróleo no país não para de cair. No ano passado, pela primeira vez na história recente, a balança comercial do setor apresentou déficit (de US$ 3,4 bilhões). Apesar disso, a Argentina mantém uma das maiores reservas de recursos não convencionais. A bacia de Vaca Muerta, descoberta pela Repsol em 2011, foi comparada ao pré-sal brasileiro em abundância, mas também no alto custo de exploração.
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O surto intervencionista de Cristina a colocou na última semana no mesmo patamar de seus companheiros latino-americanos Evo Morales, presidente da Bolívia, e Hugo Chávez, presidente da Venezuela. Em 2006, a nacionalização dos combustíveis na Bolívia, que obrigou a venda de duas refinarias da Petrobras, criou um imbróglio diplomático com o Brasil. Chávez, que fez o mesmo no ano seguinte, parabenizou a presidenta argentina pela medida contra a Repsol. Cristina tem experiência no assunto. Ao lado do ex-marido, Néstor Kirchner, ela participou dos processos de reestatização de grandes empresas, como os Correios, a companhia aérea Aerolíneas Argentinas e as Minas de Carvão Río Turbio. Como coerência não é o forte da política latino-americana, o casal peronista havia apoiado as privatizações dessas empresas, realizadas nos anos 1990 durante o governo de Carlos Menem, que, hoje senador, tampouco criticou essa reversão.

Recentemente, o governo argentino entrou em confronto com outras duas grandes empresas estrangeiras. A primeira foi a Petrobras, que teve sua concessão cassada na província de Neuquén (que tem autonomia para as concessões petrolíferas). Em seguida, a subsidiária da americana Bunge teve seu registro suspenso pelo Fisco argentino e seus bens embargados pela Justiça. A acusação é a mesma sofrida por outras companhias do setor de agronegócios: evasão fiscal. Com essa trajetória, a economia argentina, que tem apresentado forte desaceleração combinada a altas taxas de inflação, vai mal. “Parece que entramos em uma escalada protecionista, em que os argentinos estão à frente, mas não estão sozinhos”, disse à ISTOÉ Craig VanGrasstek, professor de política comercial na Universidade de Harvard e dono da consultoria Washington Trade Reports. “E isso é muito preocupante.”
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