Em um surto nacionalista, a presidenta
Cristina Kirchner expropria ações da petroleira YPF que pertenciam aos
espanhóis da Repsol, alimenta o crescente ufanismo do país e provoca
revolta na comunidade internacional
Mariana Queiroz Barboza
UFANISMO
Militantes peronistas tomaram as ruas de
Buenos Aires após o anúncio da presidenta
Ao anunciar a reestatização da petroleira YPF, em um salão da Casa
Rosada, a presidenta da Argentina, Cristina Kirchner, viveu um momento
de glória. Assim que o discurso terminou, governadores das províncias,
militantes peronistas e até políticos de oposição se uniram em uma
calorosa sinfonia de aplausos. “Somos o único país da América Latina, e
eu diria quase do mundo, que não maneja seus recursos naturais”, disse
Cristina. Em seguida, como se presenciassem uma emocionante partida de
futebol da seleção, os presentes levantaram os braços e entoaram
cânticos nacionalistas – cena que parecia deslocada no tempo, por
lembrar os excessos ufanistas do passado. Horas depois, manifestantes
foram à Plaza de Mayo comemorar o surpreendente projeto de lei. Entre
outros absurdos, ele prevê a expropriação de 51% das ações da YPF que
pertenciam aos espanhóis da Repsol. A onda de patriotismo que varre a
Argentina, que nos últimos meses reabriu a discussão sobre a soberania
das Ilhas Malvinas, escolheu agora o capital estrangeiro como novo alvo.
De uma nação autossuficiente para um país importador de petróleo, a
Argentina comprou no exterior quase US$ 10 bilhões em combustíveis no
ano passado. E a culpa foi creditada na conta da Repsol. “Esse ato não
ficará impune”, disse Antonio Brufau, presidente da companhia espanhola.
Principal investidor estrangeiro na Argentina, a Espanha aplicou no
país US$ 23,2 bilhões em 2010 (último dado disponível) e historicamente
desempenha papel importante no comércio bilateral. Como a Argentina
sofre com a desconfiança do mercado internacional por causa do calote da
dívida pública em 2001, a busca por um superávit comercial é obsessão
do governo. Nesse sentido, o saldo entre os dois países favorece a
Argentina, que, em 2011, exportou US$ 1,4 bilhão a mais do que importou.
Assim, uma das formas de atingir os hermanos seria restringir as
importações, com o apoio da União Europeia. A segunda alternativa é pelo
confronto direto no Banco Mundial. A Repsol, que perderá 25% de sua
receita sem a filial argentina, sinalizou que entrará na Justiça para
obter uma compensação.
Após uma avaliação de seus ativos no país, em que considera o valor
de cada ação da YPF US$ 46,55 (agora vale menos de um terço disso), a
Repsol quer um pagamento de US$ 10,5 bilhões. Se o governo argentino
aceitasse essa condição, a forma com que estatizou a companhia seria
esquecida pelos espanhóis. Tudo indica, no entanto, que o valor pago
estará bem abaixo do requisitado. “Bobos são os que pensam que o Estado
deve ser estúpido e cumprir o que diz a empresa”, disse o vice-ministro
de Economia argentino e mentor do projeto de expropriação, Axel
Kicillof. O jovem economista de 41 anos e olhos azuis tem cada vez mais
poder dentro do governo e parece cultivar um discurso agressivo com a
mesma dedicação que o faz com sua farta costeleta. Segundo ele, a YPF é
dona de uma dívida de US$ 9 bilhões, além de passivos ambientais. Sobre o
presidente da Repsol, afirmou: “É um empresário que aplica políticas
inescrupulosas. O que fez foi uma extorsão. Operava para que os preços
do petróleo subissem e baixou a produção porque acreditava que os preços
internacionais aumentariam.”
Os pesquisadores do setor energético pensam de forma diferente. “O
controle interno do preço do petróleo é o maior problema para as
empresas, pois cria uma situação artificialmente mantida pelo governo,
prejudicando a rentabilidade e desestimulando os investimentos”, diz
Carlos Belem, diretor da consultoria IES, especializada em energia. “A
conta não fecha.” De acordo com Belem, há mais de dez anos os geólogos
já alertavam a Argentina de que a curva de consumo ultrapassaria a da
produção em pouco tempo. Desde 2001, a produção de petróleo no país não
para de cair. No ano passado, pela primeira vez na história recente, a
balança comercial do setor apresentou déficit (de US$ 3,4 bilhões).
Apesar disso, a Argentina mantém uma das maiores reservas de recursos
não convencionais. A bacia de Vaca Muerta, descoberta pela Repsol em
2011, foi comparada ao pré-sal brasileiro em abundância, mas também no
alto custo de exploração.
O surto intervencionista de Cristina a colocou na última semana no
mesmo patamar de seus companheiros latino-americanos Evo Morales,
presidente da Bolívia, e Hugo Chávez, presidente da Venezuela. Em 2006, a
nacionalização dos combustíveis na Bolívia, que obrigou a venda de duas
refinarias da Petrobras, criou um imbróglio diplomático com o Brasil.
Chávez, que fez o mesmo no ano seguinte, parabenizou a presidenta
argentina pela medida contra a Repsol. Cristina tem experiência no
assunto. Ao lado do ex-marido, Néstor Kirchner, ela participou dos
processos de reestatização de grandes empresas, como os Correios, a
companhia aérea Aerolíneas Argentinas e as Minas de Carvão Río Turbio.
Como coerência não é o forte da política latino-americana, o casal
peronista havia apoiado as privatizações dessas empresas, realizadas nos
anos 1990 durante o governo de Carlos Menem, que, hoje senador,
tampouco criticou essa reversão.
Recentemente, o governo argentino entrou em confronto com outras duas
grandes empresas estrangeiras. A primeira foi a Petrobras, que teve sua
concessão cassada na província de Neuquén (que tem autonomia para as
concessões petrolíferas). Em seguida, a subsidiária da americana Bunge
teve seu registro suspenso pelo Fisco argentino e seus bens embargados
pela Justiça. A acusação é a mesma sofrida por outras companhias do
setor de agronegócios: evasão fiscal. Com essa trajetória, a economia
argentina, que tem apresentado forte desaceleração combinada a altas
taxas de inflação, vai mal. “Parece que entramos em uma escalada
protecionista, em que os argentinos estão à frente, mas não estão
sozinhos”, disse à ISTOÉ Craig VanGrasstek, professor de política
comercial na Universidade de Harvard e dono da consultoria Washington
Trade Reports. “E isso é muito preocupante.”
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