São Paulo é a maior metrópole do Brasil,
motor da economia nacional, responsável por 12% da riqueza brasileira. O
governo paulista dispõe do segundo maior orçamento do País e emprega um
contingente policial numericamente superior ao de muitos países latino
americanos. São cerca de 120 mil policiais civis e militares. Bem usada,
seria uma garantia de paz à população da cidade. Mas, apesar de tantos
dados superlativos, São Paulo está de joelhos diante da criminalidade. A
população da região metropolitana vive com medo, insegura e acuada
diante de execuções sumárias realizadas à luz do dia e da barbárie de
assassinatos cada vez mais cruéis que se repetem numa rotina apavorante.
Na sexta maior cidade do mundo, o crime foi banalizado. A vida foi
banalizada. Amparados na ausência de uma política de segurança pública,
na omissão das autoridades constituídas e na inépcia de policiais –
muitos ligados às bandas podres da instituição e outros desmotivados e
até cerceados para o exercício de suas atividades –, os bandidos não
escolhem hora e nem lugar para agir. Nem mesmo as câmeras espalhadas
pela metrópole impedem uma matança que não escolhe alvos. Ao contrário, o
que elas registram são imagens muito fortes de mortes cruéis, com
impacto devastador e revoltante sobre quem as assiste. Mesmo aqueles que
entregam seus pertences sem esboçar qualquer reação são friamente
alvejados. A certeza da impunidade produto da letargia da polícia e da
Justiça dão ânimo à crescente ousadia dos marginais. E o poder público
assiste, inerte, à escalada de violência que faz de reféns 12 milhões de
habitantes.
A escalada de latrocínios – roubos seguidos de mortes – que
aterroriza os paulistanos além de revelar a falência de um modelo de
segurança pública que há duas décadas se instalou no Estado, também
desafia os acadêmicos. Houve tempos em que se entendia o aumento da
violência – e consequentemente do pânico – como mais um dos nefastos
efeitos diretos da pobreza e da desigualdade econômica. Roubava-se e até
matava-se numa ação de desespero, para sobreviver, numa lógica
perversa, mas com algum sentido. Hoje, numa situação de pleno emprego e
de indicadores sociais cada vez mais positivos, os assassinatos
continuam. Mata-se por matar. Mata-se por impulso. Mata-se por nada. E a
cada morte a sociedade se encolhe, se esconde e, lentamente, também
morre. “Problemas sociais como desemprego, exclusão e pobreza podem até
influir na violência urbana”, afirma o sociólogo Benedito Domingos
Mariano, ex-ouvidor da Secretaria de Segurança de São Paulo. “Mas hoje
essas causas não podem ser usadas como justificativa para escamotear as
deficiências estruturais das polícias na atribuição de garantir a
segurança pública”.
Na semana passada, as imagens do auxiliar de manutenção Eduardo
Paiva, 39 anos, sendo covardemente assassinado rodaram o Brasil. Seguido
por bandidos após sacar R$ 3 mil do banco, ele levou um tiro na cabeça
em frente a duas escolas, na segunda-feira 3 pela manhã, em
Higienópolis, um dos bairros mais nobres de São Paulo. Eduardo foi
executado quando estava de joelhos diante de seu assassino. As cenas são
o retrato da sensação de insegurança que grande parte dos paulistanos
vive todos os dias (leia relatos de outros crimes que chocaram a cidade
nos quadros ao longo da reportagem). Segundo uma pesquisa do Instituto
Datafolha, a maior preocupação de 42% dos moradores da capital é ter a
casa invadida ou sofrer um assalto na rua. E, ao contrário do que possa
parecer, esse sentimento é muito real. “O medo nunca é artificial, ele é
um sentimento que depende de muito mais do que apenas o movimento real
da criminalidade”, afirma Renato Sérgio de Lima, secretário geral do
Fórum Brasileiro de Segurança Pública. “Reduzi-lo depende de como a
população compreende a ação do Estado e das polícias. Por isso, uma
política de segurança pública eficiente tem que ser pensada não só na
sua dimensão de prevenção e repressão. Ela tem que levar em consideração
o que as pessoas sentem.” Nesse sentido, a metrópole paulistana não
consegue visualizar nenhuma luz no fim do túnel.
Viver em São Paulo hoje é uma experiência aterrorizante, mesmo nas
mais simples ações cotidianas. Caminhar por uma calçada em uma rua
qualquer, não importa se em bairro nobre ou na periferia. Comer uma
pizza no seu restaurante favorito. Conversar com um amigo na porta de
casa. Ir ao banco ou a uma casa lotérica. Sair para ou voltar da escola.
Fazer um passeio de carro. O medo, para o paulistano, é sempre um
incômodo companheiro. E, influenciado por ele, desconfia-se de qualquer
um. Enxerga-se em todos os demais atitudes suspeitas. Apressa-se o
passo, cancela-se programas, suspende-se a vida. Vive-se em liberdade
teórica. Na prática, enquanto a bandidagem circula tranqüila, os
cidadãos sentem-se aprisionados. Mas o que fez com que São Paulo
chegasse a esse estado de barbárie? Segundo especialistas, nos últimos
20 anos o Estado não formulou uma política de segurança de médio e longo
prazo. Apenas trabalhou com a questão da violência policial, alternando
momentos de uma polícia matadora com momentos de uma polícia mais
contida. Com essa fórmula, acabou não conseguindo punir efetivamente os
maus policiais e os bons se sentem amarrados, na medida em que são
obrigados a até contar e explicar cada tiro disparado. O problema é que
para enfrentar o crime não precisamos necessariamente de uma polícia
arbitrária. Precisamos, sim, de uma polícia eficiente.
O latrocínio talvez seja o crime que mais assusta a população porque
parece imprevisível. Ele começa com um assalto e termina em assassinato.
É um dos grandes desafios para a polícia. A forma para evitá-lo é a
investigação inteligente. Historicamente, o número de latrocínios tende a
cair na medida em que os criminosos são presos. Ou seja, um latrocínio
esclarecido pela polícia desencoraja a ação de outros criminosos. Assim,
em São Paulo, este ano, o aumento de 64% nas estatísticas desse tipo de
crime é, além de intimidador para as pessoas, revelador da inação
oficial. Na Secretaria de Segurança pouco se sabe sobre o perfil de quem
o comete e as circunstâncias em que ele acontece. Para Guaracy
Mingardi, especialista em segurança pública da Fundação Getúlio Vargas,
matar não é a finalidade do ladrão. “Quem mata é o criminoso
pé-de-chinelo, aquele está bolado e não raciocina bem. Ele corre o risco
de pegar muitos anos de cadeia por nada”, explica. Para ele, a
diminuição desse tipo de crime passa pelo desarmamento, que reduz o
estoque de armas, e um sistema de investigação amplo e eficiente. “Só
conseguiremos diminuir o número de crimes violentos quando provarmos que
não dá certo, que a possibilidade de ele ser preso é maior se ele
matar. O problema é que a investigação, por regra, não é feita”, diz. A
especialista em criminologia Ilana Casoy acredita que esse tipo de
comportamento dos marginais pode ser explicado, em parte, pelo fato de
que, no Brasil, o risco de roubar compensa. “Apenas 2,5% dos roubos são
resolvidos. Nenhum outro negócio tem tal índice de sucesso. No caso de
mortes, a chances de encontrar o autor são de 6%. Na Inglaterra são de
90%.” Para ela, a atitude violenta só pode ser coibida com a certeza da
punição, não o tempo de pena. E para isso, evidentemente, é preciso
investir em infraestrutura de investigação e inteligência, aspecto
negligenciado pela Secretaria de Segurança Pública. “Precisamos elevar a
taxa de esclarecimento porque quanto mais crimes a gente resolver,
quanto mais assaltantes e infratores forem presos, mais nós estaremos
prevenindo outros crimes, principalmente contra o patrimônio”, admite o
secretário Fernando Grella.
A teoria não chega à prática na pasta comandada por Grella. A ousadia
dos bandidos caminha na direção oposta à competência da polícia. Numa
demonstração de que não temem o efetivo policial, eles chegam a cometer
assaltos nos mesmos lugares por dias consecutivos sem serem incomodados.
Os ladrões que atuam no Morumbi, na zona sul, praticamente na porta do
Palácio dos Bandeirantes, onde despacha há três anos o governador
Geraldo Alckmin, promovem arrastões freqüentes na região. Na semana
passada, Alckmin – chefe de Grella e, portanto, quem deveria ser
responsável pela implantação de uma política de segurança -- recebeu 400
convidados para um jantar beneficente na residência oficial. Era para
ser uma noite descontraída, para incentivar ações solidárias, mas a
escalada da violência dominou as conversas de empresários e socialites.
Outras regiões da cidade, como o Paraíso e Perdizes, bairros de classe
média, também são cenários freqüentes dos marginais. Qualquer paulistano
sabe disso. A polícia, profícua em elaborar estatísticas, também.
Ninguém, no entanto, explica porque a força pública não consegue mudar
esse quadro. Há mais duas décadas, é sabido que nas cercanias da PUC, o
número de carros roubados é enorme. Continua assim. E, isso traz aos
marginais a certeza da impunidade. Em 14 de maio, em frente à
universidade, o estudante Bruno Pedroso Ribeiro, de 23 anos, foi
alvejado no pescoço depois de dar o celular ao seu algoz. Ficou quase um
mês internado no Hospital das Clínicas. Três dias depois, na Vila
Mariana, na zona sul, um adolescente foi baleado no abdômen dentro do
carro onde estava com os pais e o irmão após a família ter entregado os
pertences aos marginais.
Em bairros centrais da capital, antes tidos como ilhas de paz no caos da
metrópole, essa falta de políticas abriu brechas para a entrada do
crime, historicamente maior na periferia. Na semana passada, no Itaim
Bibi, na zona sul, o motorista Márcio Cazuza, 42 anos, levou um tiro no
tórax às 7h da manhã durante uma tentativa de assalto. As notícias de
tiroteio tornaram-se comuns em bairros sofisticados da capital paulista.
Até a rua Oscar Freire, famosa no Brasil por concentrar as principais
lojas de grife, recentemente foi palco de uma troca de tiros entre a
polícia e bandidos que fizeram um arrastão num salão de cabeleireiro.
Mais aterrorizante ainda é não ter o que dar ao bandido. Num lance de
extrema crueldade, criminosos tocaram fogo na dentista Cinthya de Souza,
no final de abril, porque só conseguiram sacar R$ 30 de sua conta
bancária. No dia 1º de junho, às 14h, um marginal disparou contra a
cabeça da empregada doméstica Maria do Carmo Cunha, de 62 anos, que
pagava uma conta atrasada em uma lotérica, porque as funcionárias do
local não lhe entregaram dinheiro. Segundo Luciana Guimarães, diretora
do Instituto Sou da Paz, “se não conseguirmos encarar a agenda do roubo,
não conseguiremos reduzir os índices porque o latrocínio é um roubo mal
sucedido”, explica. Só em 2012 foram registrados mais de 125 mil roubos
na região metropolitana de São Paulo. Mas, apesar de toda a crueldade,
não existe crime, organizado ou não, que resiste a uma política de
segurança inteligente.
O exemplo do Rio de Janeiro mostra como a ação policial pode, sim,
fazer a diferença. Lá, o crime organizado exercia um poder paralelo com
domínio territorial de áreas da cidade. Uma política de segurança bem
pensada, planejada e executada mudou um quadro que por décadas pareceu
irreversível. O Estado retomou os territórios com polícia, escola e
centros de saúde. A polícia foi valorizada e recebeu diretrizes firmes
de como agir, respaldadas pela secretaria de Segurança. Os maus
policiais foram punidos. A população se sentiu segura, saiu às ruas e os
criminosos perderam poder de fogo. Em São Paulo, a indefinição e a
falta de apoio dos superiores enfraqueceram a polícia. Cobrado por
medidas mais efetivas, o governador paulista lançou há três semanas seu
terceiro pacote de segurança em três anos. Alckmin anunciou a intenção
de dar bônus a policiais que cumprirem metas de redução de criminalidade
em suas regiões, entre outras medidas, como a ampliação do efetivo, o
que depende de concurso público. Segundo George Melão, presidente do
Sindicato dos Delegados de Polícia do Estado de São Paulo, no entanto, o
governo terá de sentar à mesa e negociar se quiser avançar. “Calculamos
que, para atender a demanda de investigação dos dias de hoje,
precisamos entre 12 mil e 15 mil novos policiais civis”, diz. Ele também
aponta a necessidade de melhorar a remuneração do policial no Estado,
que é de R$ 2,5 mil em média, assim como a dos delegados, de R$ 7,2 mil.
“O salário dos delegados em São Paulo é o pior entre todos os Estados
da federação e, mesmo assim, o governo não se mostra disposto a
negociar”, diz.
Fotos: GABRIELA BILÓ/FUTURA PRESS; NIVALDO LIMA/FUTURA PRESS; João Castellano/ag. istoé; PAULO PRETO/FUTURA PRESS;
Fotos: Avener Prado/Folhapress; reprodução de câmera de segurança; MáRIO BITTENCOURT/ESTADãO CONTEúDO
Fotos: Eduardo Anizelli/Folhapress; EDISON TEMOTEO/FUTURA PRESS;
Pedro Paulo Ferreira/Fotoarena/Folhapress; NILTON FUKUDA/ESTADÃO
Fotos: Lucas Jackson/REUTERS; Fredy Amariles/Reuters; Fábio Guimarães/Extra/Ag. O Globo
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