24 de jun. de 2013

Falou, tá falado

Os rostos jovens e as vozes firmes se multiplicaram, cresceram e assustaram o que agora é o antigo poder, que conheceu uma nova ordem: as ruas mandam!

por Sérgio Pardellas
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SÃO PAULO
Na Ponte Estaiada, novo cartão-postal da cidade, o ápice da
manifestação que reuniu 65 mil pessoas na segunda-feira 17
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BRASÍLIA
Na mesma segunda 17, manifestantes romperam o cordão de
isolamento da PM e ocuparam a cobertura do Congresso Nacional
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RIO DE JANEIRO
100 mil pessoas caminham em paz pelo Centro na noite da segunda 17.
Contra a corrupção, os gastos na Copa e o reajuste nas tarifas de ônibus,
os cariocas tomaram a avenida Rio Branco e a Candelária
Junho de 2013 já fez história. É provável que, daqui a algumas décadas, brasileiros que tomaram as ruas do País no final do outono deste ano se reúnam num café, num boteco ou mais possivelmente na timeline de uma rede social para recordarem, cheios de orgulho, “daquele junho de 2013”. Quando se formaram multidões que, de um modo contraditório, pareciam gigantescas afirmações de individualidades. Com seus rostos únicos, bandeiras variadas, gritos independentes e gestos singulares. A completa expressão do novo. Daquilo que ninguém ousou prever e do futuro que ninguém assegurou adivinhar. Esses brasileiros se sentirão como a geração de 1968, que ainda cultiva as lembranças das heroicas passeatas contra a ditadura, como os manifestantes de 1984, que se emocionam com as imagens dos comícios das Diretas-já, e como os caras-pintadas de 1992, que decretaram o fim de um governo corrupto.
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Não se pode subestimar o que já aconteceu nem convém ignorar o que ainda possa vir. Nas duas últimas semanas, com suas diferentes tribos e interesses assumidamente difusos, jovens emergiram das redes sociais, conseguiram levar mais de um milhão de pessoas às ruas, deixaram a classe política atordoada e fizeram com que prefeitos de 13 capitais e 65 cidades anunciassem a redução das tarifas de transporte público. A voz das ruas, que parecia anestesiada, se impôs. A opinião pública revelou sua força. Mesmo sem uma grande causa aglutinadora, fez reverberar por todos os cantos do País uma insatisfação latente que o poder institucionalizado desconhecia. Pelo menos 480 cidades participaram dos protestos. Os manifestantes transformaram as principais avenidas brasileiras em verdadeiros bulevares da liberdade de expressão. A nação acordou e, com o recuo dos governantes, descobriu que, sim, é possível provocar mudanças. Foi um daqueles momentos emblemáticos em que o povo mostra que as instâncias do poder constituído, de algum modo, descolaram-se de suas aspirações. “Trata-se da mais expressiva, surpreendente e rápida vitória popular de nossa história”, diz Rubens Figueiredo, diretor do Centro de Pesquisas e Análises de Comunicação (Cepac). Ele explica: “Expressiva por forçar a rendição dos titulares do Estado mais importante do País e de uma das maiores cidades do mundo. Surpreendente porque nem o mais atento analista seria capaz de prever o que aconteceu. E rápida, pois, em poucos dias, a coisa se resolveu”.
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A velocidade com que as demandas das ruas forçaram a recuada das autoridades foi um triunfo. Apenas 13 dias depois da realização do primeiro ato na avenida Paulista, em São Paulo, contra o aumento das tarifas do transporte coletivo, convocado pelo Movimento Passe Livre (MPL), o prefeito do Rio, Eduardo Paes (PMDB), o governador Sérgio Cabral (PMDB), o prefeito de São Paulo, Fernando Haddad (PT), e o governador paulista, Geraldo Alckmin (PSDB), anunciaram a completa revogação dos reajustes, tanto de ônibus urbanos como de metrô, trens metropolitanos e, no caso do Rio, das barcas. Em dezenas de cidades, administradores de todas as colorações partidárias se viram obrigados a seguir pelo mesmo caminho. Foi uma vitória e tanto para um movimento que, de início, era menosprezado, difamado como partidário e brutalmente reprimido. O show de violência policial com que o governador de São Paulo, Geraldo Alckmin, brindou as manifestações de protesto da quinta-feira 13 serviu como impulso decisivo para que o protesto ganhasse adesões e força.
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Os jovens, a maioria estudantes universitários, compõem o núcleo das manifestações. A eles, juntaram-se outros grupos, carregando todos os tipos de demandas e uma sensação de insatisfação generalizada. A diversidade de rostos indicou a pulverização de causas. Os manifestantes querem muito mais do que evitar um aumento de passagem. Eles sonham com um país melhor. Gritam contra a corrupção, contra os gastos públicos com a Copa do Mundo, contra a má qualidade de serviços públicos, contra a precariedade da saúde e da educação, contra a PEC 37 (projeto que busca tirar do Ministério Público o poder de investigação). Com essa demanda, por sinal, já vislumbram nova vitória. Escaldado com os protestos, o presidente da Câmara, Henrique Eduardo Alves (PMDB-RN), adiou a votação da PEC. Antes prevista para o dia 26, foi oportunamente transferida para a primeira semana de julho.
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A atual onda de protestos é diferente em quase tudo das manifestações que o Brasil conheceu décadas atrás. O ex-líder estudantil Vladimir Palmeira, por exemplo, precisou dos centros acadêmicos politizados e dos sindicatos controlados pela esquerda para conseguir convocar, em 1968, os manifestantes da Passeata dos 100 Mil, um dos marcos da luta contra a ditadura militar antes do AI-5. Era necessário promover pelo menos meia dúzia de passeatas até obter uma grande mobilização como aquela. Hoje, o local físico do manifesto são as redes sociais, sem fronteiras. Segundo a professora do Departamento de Pós-Graduação em Comunicação da Uerj, Alessandra Aldé, não só o cenário político-social do Brasil mudou. “As redes sociais têm um papel importante nesse processo, porque permitem o envolvimento de pessoas que talvez não estariam engajadas politicamente. A troca de informação é muito mais intensa e permite chegar a outros grupos”, diz ela. As passeatas não são mais embaladas por comícios, não há lideranças com seus discursos inflamados sobre palanques ou ídolos mitológicos guiando pensamentos. Os fugazes gritos de guerra que surgem da multidão começam a ser cunhados no Twitter, no Facebook e no Instagram. Os procedimentos a serem adotados durante os protestos também são determinados pelas redes. Antes das manifestações das últimas semanas, a internet espalhou um manual para participantes nas ruas, com indicações sobre como “lidar com gás lacrimogêneo e bombas”. As redes também difundiram o mapa colaborativo da chamada “revolta do vinagre” – com locais de concentração em várias cidades e uma central de ajuda para participantes, informações sobre os pontos sem conflito potencial, rotas livres e socorro a feridos em confrontos. Os compartilhamentos impactaram potencialmente mais de 79 milhões de internautas.
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SENTIDO ÚNICO
Multidão de 30 mil pessoas fecha uma das pontes que ligam
a ilha de Florianópolis ao continente na quinta-feira 20
O caráter apartidário é outra novidade dos protestos atuais. Há 30 anos não se viam manifestações de rua sem as bandeiras vermelhas do PT tremulando. Agora é tudo diferente, o que inquieta os políticos. Entre os manifestantes era possível ver cartazes que diziam “Nenhum partido me representa”. Quem desfraldava bandeiras, mesmo de agremiações bastante vinculadas aos movimentos estudantis como PSOL, PSTU E PCO, acabava rechaçado pelos participantes. Na quinta-feira 20, na “manifestação da vitória”, na avenida Paulista, em São Paulo, estandartes petistas foram arrancados das mãos de militantes e rasgados. A determinação do presidente do PT, Rui Falcão, de levar seus correligionários à rua, após meses de abstinência forçada, quase degenerou em pancadaria. No Rio, bandeiras da CUT tiveram a mesma sorte.
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A crise de representatividade dos partidos é uma resposta, em grande parte, a episódios recentes em que seus próprios líderes expõem a falta de compromisso com programas e bandeiras, necessários para o bom jogo político. E abre brecha para imagens preocupantes. Em Brasília, na semana passada, surgiu uma faixa que dizia: “Chega de políticos incompetentes! Intervenção militar já!” A mesma mensagem apareceu depois em São Paulo, assinada por militares aposentados que fazem pregações autoritárias pelo País. A presença de grupos como esse – pequenos, mas barulhentos como os vândalos que espalharam violência pelas manifestações Brasil afora – revela uma face preocupante do movimento: a linha tênue do apartidarismo, que é positiva ao tentar evitar que os manifestantes virem massa de manobra das instituições, mas pode facilmente descambar para a manipulação por facções com interesses escusos. Os próprios líderes do MPL decidiram abandonar a passeata da quinta-feira em São Paulo e anunciaram na sexta que não convocariam novas manifestação, após identificarem a presença de infiltrados. “Militantes de extrema direita querem dar ares fascistas ao movimento”, afirmou o professor de história Lucas Oliveira, um dos porta-vozes do MPL.
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A diversidade de opiniões é encarada pelos manifestantes como virtude. A pedagoga Bernadete Franco foi para a passeata em São Paulo com o objetivo de protestar pela melhoria nas condições da educação no Brasil. “Dá uma felicidade ver essa gente toda aqui. São Paulo acordou e resolveu sair do Facebook para vir às ruas. O caráter difuso é nossa maior força”, disse Bernadete. A aposentada Estela Camargo, 60 anos, afirmou que protestava pelos altos impostos. “A gente paga educação e saúde duas vezes”, lamentou. “Para onde vai esse dinheiro?” Até estrangeiros resolveram se unir aos protestos. O gerente de marketing Batiste Denay, 25 anos, está no Brasil há um ano e meio e já se sente responsável por repetir aqui o que fazia na França, seu país de origem, quase todas as semanas: sair às ruas. “Nós, franceses, temos essa coisa de protestar. O mínimo que eu poderia fazer seria participar aqui também.”
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COMEMORAÇÃO E TENSÃO
Líderes do MPL festejam redução da tarifa na quarta-feira 19 (acima).
No dia seguinte, um jovem morreu em Ribeirão Preto
e houve conflitos com militantes do PT em São Paulo
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“A revolução contemporânea é a da incerteza”, já definiu o filósofo francês Jean Baudrillard, um especialista em analisar o mundo interconectado que é a marca do século 21. E quando nesse tempo ainda surge algo com o signo inequívoco do novo, o destino é ainda mais imprevisível. Comparações com exemplos do passado são inúteis e talvez seja mais prudente olhar para o lado do que para o retrovisor. As redes sociais inspiraram o movimento Occupy Wall Street e a chamada Primavera Árabe. Durante a revolta popular de 18 dias, ocorrida no Egito no começo de 2011, o Twitter e o Facebook facilitaram a organização de grandes manifestações, com seu epicentro na famosa Praça Tahrir, e funcionaram como plataforma para articular demandas políticas. Também há semelhanças visíveis com a efervescência popular na Praça Taksim, em Istambul, na Turquia. Aqui, como lá, os protestos atiçados pelas redes sociais superaram em larga escala a fagulha inicial que os provocou. Na Turquia, o estopim foi a ameaça de extinção pelo governo de um parque em Istambul. “Esses foram os motivos deflagradores dos protestos, mas não as causas”, diz o sociólogo Demétrio Magnoli. “Em ambas as situações se confronta todo um sistema político, uma elite política inteira.” No caso do Brasil, acredita Magnoli, tanto governo quanto oposição são alvo dos manifestantes. “É bom que ninguém se engane: o que os jovens estão dizendo é que as coisas não vão tão bem quanto estão dizendo para eles.”
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Para tentar explicar o que sacudiu o Brasil nos últimos dias, o professor do Instituto de Economia da UFRJ Luiz Carlos Delorme Prado recorre à figura do “efeito túnel” criada pelo economista Albert Hirschman, falecido no ano passado. Segundo Prado, era como se o Brasil estivesse num engarrafamento parado em duas pistas, estagnado desde a década de 1980. Todos se encontravam desesperançados com a má distribuição de renda e a falta de acesso aos bens de consumo e serviços públicos, mas permaneciam resignados, já que ninguém se movia. Uma das pistas começa, então, a andar e os que permanecem na outra, que não se movimenta, se frustram e passam a exigir o movimento daquela fila. “Nos últimos 15 anos houve uma grande melhoria na qualidade de vida de uma parcela da população tradicionalmente excluída”, diz o economista. “A fila andou, mas a qualidade de vida de outros segmentos da população não melhorou proporcionalmente, porque a oferta e a qualidade dos serviços públicos não acompanharam.” Hoje, segundo Prado, a percepção da população sobre os partidos políticos é de que eles não têm projetos que atendam às suas novas demandas. “O protesto não é fruto da miséria, mas do progresso insuficiente”, diz ele.
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Até quando durará o fôlego das ruas não se pode prever. Os protestos pararam o País, situação que, se perdurar, não ajudará evidentemente qualquer agenda por mais progresso e bem-estar da população. E esse é apenas um dos dilemas que se colocam daqui para a frente. É fundamental ainda que sejam coibidos com rigor os atos de vandalismo que a imensa maioria dos manifestantes não se cansa de condenar e que apavoram a nação. Uma mudança no modo de lidar com os anseios populares também se impõe. A política nacional que parecia estática, engessada no embate entre PT e PSDB, se moveu. Agora ela precisará levar em conta que a rua se sente poderosa e decidida a fazer valer sua vontade. Será uma imprudência entrar num processo político sem ter em mente o que ocorreu nas últimas duas semanas. No ano eleitoral de 2014 não caberão mais discursos desconectados como os que foram entoados na última semana. Forçados a rever o aumento das passagens, autoridades disseram que, para reduzir tarifas, teriam de rever investimentos. Pois não entenderam nada: o grito da opinião pública foi justamente uma condenação das prioridades de gastos que seus governos vêm adotando. É necessário que todos entendam: a capacidade de mobilização das redes sociais não tem limites e seu poder é transformador. Ali se expressa a insatisfação, se mobiliza e se constrói, em tempo real, a história moderna.
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