4 de fev. de 2019

Crime anunciado

Desleixo da Vale leva a desabamento da barragem de rejeitos de Brumadinho e provoca uma das maiores tragédias ambientais da história, deixando mais de 350 mortos ou desaparecidos. O que se espera é que dessa vez os culpados não fiquem impunes

Crédito:  Douglas Magno / AFP
DESTRUIÇÃO Bombeiros trabalham no resgate das vítimas soterradas sob a lama de mineração da barragem da mina Córrego do Feijão (Crédito: Douglas Magno / AFP)

Especial Brumadinho

TRABALHO ÁRDUO Equipes de resgate tentam encontrar corpos; cerca de mil bombeiros, policiais e socorristas atuam na região do desastre (Crédito:Márcia Foletto)
O rompimento da barragem da mina Córrego do Feijão, em Brumadinho, cidade na região metropolitana de Belo Horizonte, não foi uma fatalidade. A proprietária da mina, a Vale, teve plenas condições de dimensionar os riscos de uma catástrofe e menosprezou o potencial assassino de suas antiquadas barragens de rejeitos de extração de ferro. Três anos depois de sua subsidiária Samarco, em Mariana, também em Minas Gerais, ser responsabilizada pelo maior estrago fluvial da história, que matou 19 pessoas e contaminou completamente o Rio Doce, a Vale não aprendeu nada com a experiência. Reincidiu no mesmo erro e se envolveu em outro caso ainda mais escabroso do ponto de vista humano. Até quinta-feira 31, havia 99 mortos confirmados e 259 desaparecidos. O desmoronamento despejou 12,7 milhões de metros cúbicos de restos de mineração sobre o centro administrativo da empresa, comunidades próximas, pousadas, plantações e rios, em especial o Paraopeba. Passava das 13h quando a lama passou a engolir tudo pela frente. Nenhuma sirene tocou. As pessoas foram pegas de surpresa em tarefas cotidianas – muitos almoçavam, outros circulavam de ônibus ou descansavam.
O mínimo que se pode esperar agora é que a empresa e seus executivos sejam responsabilizados pela matança e pela destruição do meio ambiente e devidamente penalizados, para não repetir o que acontece em Mariana, onde vigora a impunidade. A procuradora-geral da República, Raquel Dodge, deu sinais de que a ação da Justiça poderá ser mais firme. Ela comunicou na segunda-feira 28, que o Ministério Público Federal formou uma força tarefa para investigar os danos ambientais e a responsabilidade penal, cível e administrativa e afirmou que os executivos da empresa poderão ser penalizados. “É preciso ter uma responsabilidade séria do ponto de vista indenizatório da empresa que deu causa a este desastre e também promover a persecução penal de pessoas que precisam ser responsabilizadas por essa falha”, disse Dodge. O presidente Jair Bolsonaro, que sobrevoou o local, usou o Twitter para expressar seu desalento: “Faremos o que estiver ao nosso alcance para atender as vítimas, minimizar danos, apurar os fatos, cobrar justiça e prevenir novas tragédias”, disse.
MORTE Caminhão do IML recolhe os corpos dos mortos na tragédia: eram 99 confirmados até quinta-feira (Crédito:Yuri Edmundo)
O primeiro passo para penalizar os responsáveis pela catástrofe foi dado com a prisão cautelar, por determinação do Ministério Público de Minas Gerais, de cinco profissionais técnicos ligados diretamente à segurança da operação da Córrego do Feijão. Eles foram presos por indícios de falsidade ideológica, crime ambiental e homicídio. Três deles são funcionários da Vale – o geólogo César Grandchamp, o gerente de Meio Ambiente Saúde e Segurança no Trabalho, Ricardo de Oliveira, e o gerente executivo operacional, Rodrigo Gomes. E os outros dois são os engenheiros Makoto Namba e André Yassuda, de uma empresa alemã, a Tüv Süd, que atestou a segurança da barragem recentemente. Todos tiveram a prisão temporária decretada por até 30 dias para prestar esclarecimentos. Mas a medida ainda é tímida. O Ministério Público não chamou para depor nenhum diretor da empresa e nem seu presidente, Fábio Schvartsman. O governo chegou a considerar a possibilidade de afastamento de Schvartsman ou de intervir na diretoria da empresa caso se comprove que houve falha na atuação do grupo de comando.
Pagamento protelado
A Vale foi multada em R$ 450 milhões – R$ 100 milhões pela Prefeitura, R$ 250 milhões pelo Ibama e R$ 99 milhões pela Secretaria de Meio Ambiente de Minas Gerais, mas a chance desse dinheiro entrar nos cofres públicos são pequenas. Como lembra o advogado Antonio Fernando Pinheiro Pedro, especializado em direito ambiental, a multa é judicializada e a empresa vai protelar o pagamento até quando puder, recorrer ao STF e, se pagar, será num futuro distante. É o mesmo que faz no caso de Mariana, onde a Samarco foi multada em 350 milhões há três anos e ainda não pagou um tostão. Além das multas, a Justiça do Trabalho determinou o bloqueio de R$ 800 milhões da Vale para assegurar o sustento das famílias dos desaparecidos. E o Ministério Público de Minas Gerais protocolou uma ação cautelar contra a empresa em que pede o bloqueio de R$ 5 bilhões para cobertura de despesas ambientais.
CADEIA Foram presos cinco técnicos por indícios de crime ambiental e homicídio, entre eles o engenheiro André Yasuda (Crédito:WERTHER SANTANA)
Para tentar se defender, a Vale contratou o escritório do prestigiado advogado Sérgio Bermudes, que começou seu trabalho declarando que a empresa “não enxerga razões determinantes de sua responsabilidade” no acidente da barragem e descartou o afastamento da diretoria da empresa em qualquer hipótese. “Não houve negligência, imprudência, imperícia”, disse o advogado. “Por que uma barragem se rompe? São vários os fatores e eles agora vão ser objeto de considerações de ordem técnica.” Bermudes disse ainda que se trata de “um caso fortuito cujas causas ainda não foram identificadas”. A Vale divulgou nota desmentindo a fala do advogado e disse que não o autoriza a falar em seu nome.
Rigorosamente, o desafio pós-tragédia de Brumadinho será a aplicação plena da Lei de Crimes Ambientais (9605/98). “A gente observa que o Estado não sabe aplicar a lei e que há uma profunda desconfiança sobre a criminalização da conduta da pessoa jurídica”, diz o advogado Pinheiro Pedro. “É importante também penalizar o presidente da empresa, que tem todas as vantagens de salários e bônus e também precisa responder pelos erros dos seus subordinados”. No ano passado, Schvartsman teve rendimentos próximos de R$ 50 milhões. Como exemplo oposto do que acontece no Brasil, na Hungria, em 2010, houve um vazamento de uma barragem de rejeitos de alumínio da empresa Mal Zrt, que deixou oito mortos. A empresa sofreu intervenção do governo e seu presidente foi sumariamente afastado.
Schvartsman veio a público quarta-feira para anunciar algumas medidas que já deveriam ter sido postas em prática há alguns anos. Disse que, por conta da falta de segurança, a Vale irá eliminar outras dez barragens similares às que desabaram em Mariana e Brumadinho a um custo de R$ 5 bilhões. São as chamadas barragens de alteamento à montante, antiquadas, com fundação menos resistente, especialmente perigosas e abolidas em várias partes do mundo. Como conseqüência disso, a empresa irá reduzir sua produção de ferro em 10% nos próximos três anos, período em que serão feitas as obras de descomissionamento para tornar a lama do rejeito estável e inerte, sem risco ambiental ou humano. A pergunta que permanece é: por que isso não foi feito antes? O episódio em Mariana não foi um alerta forte o bastante?
Outras reações da Vale para tentar salvar a própria imagem até agora incluem a suspensão de pagamento de dividendos para acionistas e de bônus para seus executivos e a doação de 100 mil reais para cada família das vítimas. A decisão de cortar a remuneração dos acionistas contradiz Schwartsman. No ano passado, ele declarou que uma de suas principais metas era pagar dividendos “polpudos” aos acionistas, em uma indicação de que está mais preocupado em elevar seus lucros do que em reduzir o enorme risco socioambiental dos empreendimentos da Vale. Depois do acidente, a Vale chegou a perder R$ 71 bilhões de valor de mercado na Bovespa, com suas ações apresentando uma queda recorde de 24,52% na segunda-feira 28.
A ambientalista Maria Teresa Corujo, membro do Conselho Estadual de Política Ambiental de Minas Gerais, foi a única integrante da Câmara de Atividades Minerárias (CMI) a votar contra um projeto de ampliação das atividades mineradoras nas minas Córrego do Feijão e Jangada, no dia 11 de dezembro do ano passado. O projeto previa o aumento de 80% na produção das minas e a continuidade do complexo até 2032. A barragem que desabou estava inativa desde 2015. Era como um lixo varrido para debaixo do tapete. “Nós não tínhamos informação sobre o risco que aquela barragem corria”, diz Maria Teresa. “Mas se aquela barragem havia sido construída com o método à montante e não tinha mais uso, e sabendo do que aconteceu em Mariana, o empreendedor deveria ter, no mínimo, começado um processo de descomissionamento.”
A má vontade da indústria mineradora com a adoção de melhores padrões de segurança pode ser exemplificada também pelo engavetamento de um projeto de lei que tramitou na Assembleia Legislativa de Minas Gerais em julho do ano passado, que restringia a instalação de barragens de rejeitos e proibia as barragens à montante. “As mineradoras promoveram um discurso falacioso de que o projeto inviabilizaria a mineração no estado”, afirma o deputado João Vitor Xavier (PSDB), autor do projeto. “Se não fosse a prioridade do lucro, o acidente de Brumadinho poderia ter sido evitado. Bastaria que fosse utilizado um método de mineração mais moderno, com o empilhamento a seco.”
Crise hídrica
Outra consequência do descaso em Brumadinho é uma crise hídrica de grandes proporções, que pode comprometer o abastecimento de água na região de Pará de Minas e atingir até o Rio São Francisco. Depois de aniquilar o Córrego do Feijão, a lama que mistura restos de minério de ferro, compostos orgânicos derivados de amônia, argila e sílica já desceu mais de 80 quilômetros pelo rio Paraopebas. A Vale instalou uma barreira de contenção para impedir que a água chegue à região de Pará de Minas e a SOS Mata Atlântica implantou um projeto com uma equipe de seis pessoas para monitorar a água da bacia do Paraopeba até a usina de Três Marias. “O que a gente pode falar com certeza é que isso é um crime ambiental, não um acidente ou uma fatalidade”, afirma Malu Ribeiro, coordenadora do programa Rede das Águas da Fundação SOS Mata Atlântica. “Mas nosso temor é que mais uma vez se faça alguma artimanha jurídica e institucional criando entidades para assumir os passivos do dano ambiental, como aconteceu em Mariana com a Fundação Renova e a Samarco”. A punição – não apenas administrativa, mas criminal – dos responsáveis não vai trazer as vidas soterradas na lama de Brumadinho de volta. Mas poderá evitar que a negligência volte a provocar vítimas no futuro.
Israelenses ajudaram, mas também aprenderam
DESEMBARQUE Israelenses já atuaram em resgates na África e Oriente Médio. Em Minas, só conseguiram recuperar corpos (Crédito:Divulgação)
O mundo se solidarizou com o drama humano em Brumadinho. Até a rainha Elizabeth II, do Reino Unido, prestou solidariedade às vítimas. O gesto de apoio mais imediato veio de Israel, que enviou 136 militares para ajudar nos regates em Brumadinho. Essa participação, porém, causou melindres com as Forças Armadas e reclamações de bombeiros de outros estados. A promessa era de que, munidos de equipamentos de alta tecnologia, ajudariam a localizar, pelo calor dos corpos e pelos sinais de celular, sobreviventes soterrados com mais eficiência que os brasileiros, que usam bastões e cães farejadores. Isso não funcionou, já que ninguém sobreviveu sob a maré de lama. Ou seja, não foi possível encontrar corpos frios com o uso de sensores térmicos, tampouco com os sinais de celular. Esse desacerto foi o suficiente para que a presença dos israelenses fosse classificado por alguns críticos como decorativa e apenas uma jogada de marketing do primeiro-ministro Benjamin Netanyahu, empenhado em estreitar laços com o governo Bolsonaro.
A imagem de um soldado afundado até os joelhos sendo ajudado por um bombeiro brasileiro contribuiu para a impressão ruim, mas a verdade é que os israelenses trabalharam duro. Mesmo sem treino para se deslocar na lama, localizaram 15 corpos entre segunda-feira e terça. Eles ficaram no Brasil por quatro dias, voltando quinta-feira 31. De início, não havia prazo de permanência, conforme afirmou o embaixador de Israel no Brasil Yossi Shelly. Se houve algum problema, foi pela busca de protagonismo das autoridades brasileiras. Sem conhecer direito o cenário que enfrentariam, os israelenses desembarcam na noite de domingo 27, carregando toneladas de material. Logo ficaram sabendo que o comandante das operações, tenente-coronel Eduardo Ângelo, considerou os equipamentos dispensáveis. “Neste caso, na maioria das vezes, eles de fato não foram necessário”, disse o coronel israelense Golan Vach.
PREPARATIVOS Comandante da equipe, o coronel Golan Vach (de quipá) estudou a área do desastre, mas trouxe equipamentos inadequados (Crédito:Divulgação)
Entre as equipes, todavia, o clima foi de colaboração, com saudações e selfies nos raros momentos de descanso. A tenente Amit Levi, filha de mãe brasileira, costuma vir ao Rio de Janeiro todos os anos e fala português com sotaque, o que ajudou na interação com os colegas brasileiros. Em Brumadinho há bombeiros militares e civis, equipes de socorristas e voluntários vindos de São Paulo, Santa Catarina, Goiás e Espírito Santo. Além disso, as Forças Armadas colocaram à disposição cerca de mil homens, que até a quinta-feira 31 não tinham sido requisitados pelo governo de Minas. O que não foi dispensado foram os helicópteros do Exército e da Aeronáutica, mais potentes que os dos bombeiros.
De acordo com militares que participaram das buscas, os israelenses foram embora com a sensação de terem sido pouco aproveitados, mas com lições aprendidas para o futuro. O que ficou de positivo foi a colaboração entre as forças. Não deverão faltar desgraças mundo afora para a aplicação do que presenciaram em Minas, onde as equipes atuaram no limite de suas forças e equipamentos. (André Vargas)

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