9 de nov. de 2015

Parlamentares do atraso

Aliança que tem garantido sobrevida a Eduardo Cunha na Presidência da Câmara promove uma agenda no Congresso que choca a sociedade ao suprimir direitos e aprovar projetos em benefício próprio

Débora Bergamasco e Marcelo Rocha
A sociedade nunca imaginou pagar um preço tão alto pela permanência de Eduardo Cunha (PMDB-RJ) no comando da Câmara. Enquanto manobras regimentais ainda lhe garantem impressionante sobrevida, os brasileiros assistem estupefatos ao avanço de uma agenda retrógrada no Congresso, que suprime direitos conquistados a duras penas pela população. Nos últimos dias, foi possível perceber com muito mais clareza que o desserviço ao País prestado pela indefinição do caso Cunha não decorre apenas da manutenção na presidência da Câmara de uma figura envolvida até o pescoço com as traficâncias na Petrobras, como se isso já fosse pouco, graças a uma aliança tácita celebrada com determinados parlamentares e grupos políticos do Congresso. É pior do que isso. O acordão em que estão incluídas não só as bancadas conservadoras da Bala, Bíblia e Boi, apelidadas pejorativamente de “BBB”, como setores do próprio PT, produz efeitos colaterais que causam danos à sociedade. Como não lamentar o Projeto de Lei 5.069, que dificulta o aborto de mulheres vítimas de violência sexual, aprovado pela Comissão de Constituição e Justiça (CCJ), no dia 21 de outubro? E a aprovação de um Estatuto, no dia 24 de setembro, que define como família apenas as relações entre homens e mulheres, no momento em que os brasileiros lutam contra a discriminação a homossexuais?
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BALA NA AGULHA
Bancadas aliadas a Eduardo Cunha (acima entre os dólares), como a ligada à
indústria armamentista, integrada por Alberto Fraga e  Jair Bolsonaro (abaixo),
conseguem aprovar suas  pautas, ao passo  que setores considerados
progressistas, representados  pela deputada Maria do Rosário,
que condena o trabalho escravo, acumulam derrotas
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Na terça-feira 27, ao analisar mudanças no Estatuto do Desarmamento numa Comissão Especial, os deputados da bancada da bala, ligados à indústria armamentista ou ex-agentes das forças de segurança, aprovaram o Projeto de Lei 3722, de 2007, que busca estender o direito ao porte de arma a diversas categorias, tornando-o um procedimento mais simples do que o necessário para tirar uma carteira de motorista. Na prática, ela acaba com o Estatuto do Desarmamento, aprovado em referendo pela maioria dos brasileiros em 2003 e que salvou 160 mil vidas, segundo a estimativa de estudo da ONG Sou da Paz. Na Comissão de Agricultura, a bancada ruralista obteve uma vitória inacreditável na última semana. Aprovou proposta que altera o Código Penal (Decreto-Lei 3.689/41), retirando do texto termos como “jornada exaustiva” e “condições degradantes de trabalho” da definição do crime de trabalho escravo. Foi uma resposta dos ruralistas aos efeitos da Emenda Constitucional 81, que prevê a expropriação de imóveis rurais e urbanos onde for constado trabalho análogo à escravidão. Pela emenda, os imóveis desapropriados por essa razão serão destinados à reforma agrária ou a programas de habitação popular, sem indenização ao proprietário. A proposta foi apresentada em 2012. Nada ocorreu com ela em 2013 e 2014. Agora, deixa a gaveta. Foi encaminhada para Comissão de Trabalho como matéria “prioritária”. “Como essas bancadas se mostram menos sensíveis à opinião pública, defender essas temas no Parlamento não é um problema para eles”, diz o deputado Ivan Valente (PSOL-SP).
As alas que patrocinam o atraso sempre existiram no Congresso, composto por 513 deputados e 81 senadores, e eleito de modo a representar a pluralidade dos eleitores brasileiros. O fato em si não constitui uma novidade. A diferença é que agora esses segmentos conseguem vencer as grandes batalhas na Casa. O triunfo da pauta do retrocesso tem sido pavimentado por uma espécie de acordo não declarado entre Cunha e as bancadas compostas por parlamentares da Frente Parlamentar de Segurança Pública (“Bala”) com 300 deputados, a Frente Parlamentar da Agropecuária (“Boi”), com 215 deputados e 21 senadores, e a Frente Parlamentar Evangélica (“Bíblia”), com 92 deputados e 5 senadores. Esses grupos foram essenciais para a eleição de Cunha à presidência da Câmara e, neste momento, são ainda mais imprescindíveis para que ele se mantenha no cargo. “A aprovação dessas pautas já vinha acontecendo desde que Cunha assumiu a Casa. Mas agora, com a crise atual, isso se intensificou”, afirma a deputada Janete Capiberibe (PSB -AP). Eles atuam numa espécie de simbiose. Cunha está à beira do cadafalso. Precisa da sustentação desses parlamentares para ganhar um respiro. Os aliados de Cunha, por sua vez, não estão a perigo, mas seus projetos podem ser esvaziados se o peemedebista for apeado do poder. “Ao patrocinar todo esse retrocesso constitucional, ele (Cunha) assegura a proteção que necessita. E vice-versa”, afirma Arnaldo Jordy (PPS-PA), um dos autores da representação contra o colega.
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COM AS BÊNÇÃOS DE CUNHA
O pastor Marco Feliciano, do PSC, é uma das expressões
no Congresso da bancada da Bíblia
O retrocesso nos costumes e a retirada de direitos constituem apenas uma das faces sombrias da Câmara comandada por Cunha, sob a conivência de setores que ainda o sustentam. Em vez de votarem as medidas do ajuste fiscal, necessárias ao equilíbrio das contas públicas, há a tentativa de aprovação de projetos casuísticos que visam a atender tão somente interesses das vossas excelências e, o que é pior, ainda elevam despesas. É o caso do aumento do Fundo Partidário e a construção do “Parlashopping”, uma brincadeira que funde as palavras Parlamento e Shopping Center. Esta possibilidade entrou como um “jabuti” em uma Medida Provisória que foi aprovada pela Câmara e sancionada pela presidente Dilma Rousseff em junho deste ano. A ideia inicial dos idealizadores do projeto é a de fazer novos anexos no Congresso Nacional que abrigue gabinetes de parlamentares, garagem e também salas comerciais, como um shopping mesmo. O tema chegou a caminhar com certa celeridade, mas diante de forte resistência popular – pois o custo total estimado em R$ 1 bilhão foi considerado impraticável para o atual momento de aperto fiscal – parte do projeto foi adiado. Ainda assim, está mantida a intenção de construir um dos prédios, avaliado em mais de R$ 300 milhões.
Quando a questão é “legislar em causa própria”, e não de acordo com os anseios da população, até mesmo parte do Senado, que tem uma composição considerada menos radical,entra na festa. Um exemplo é a condução das CPIs, que vem deixando muito a desejar. Nesta semana, a Comissão Parlamentar de Inquérito do Carf recusou por unanimidade os pedidos de convocação do empresário Luís Cláudio Lula da Silva, filho do ex-presidente Lula, e dos ex-ministros Gilberto Carvalho e Erenice Guerra. Eles são investigados na Operação Zelotes, suspeitos de participar da comercialização de decisões do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais, órgão ligado ao Ministério da Fazenda. O presidente da Comissão, Ataídes de Oliveira (PSDB-TO), apresentou os requerimentos de convocação, mas foi voto vencido.
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ENFIM, O RELATOR
Fausto Pinato, do PRB paulista, promete isenção ao emitir parecer sobre Cunha
Claro. No acordão para evitar o comparecimento à CPI do filho do ex-presidente e ex-ministros do governo petista também foram enxergadas as digitais dele, Eduardo Cunha, cujo processo por quebra de decoro é hoje um dos exemplos mais bem acabados sobre o comportamento da Câmara ditado por interesses particulares. Com uma significativa rede de proteção, que inclui, além das bancadas mais conservadoras, os partidos de oposição interessados no impeachment da presidente Dilma Rousseff, e os próprios petistas, preocupados em salvá-la, as investigações na Casa sobre o envolvimento dele no esquema do Petrolão se arrastam. Somente na quinta-feira 5, foi designado um relator para cuidar do processo no Conselho de Ética: Fausto Pinato (PRB-SP), parlamentar ligado a Celso Russomano. A representação contra Cunha foi apresentada pelo PSOL e Rede Sustentabilidade havia quase um mês. O processo chegou a ficar 21 dias parado apenas para a trivial tarefa de conferência de assinaturas. No comando da Câmara, Cunha usa o Regimento Interno para segurar o quanto pode a tramitação do processo. As chicanas continuarão a ser usadas de todas as formas até o recesso parlamentar, marcado para 17 de dezembro. Apesar da frágil defesa do peemedebista, que atribuiu dinheiro na Suíça a uma venda de carne enlatada para a África, tudo indica que definição do caso ficará para 2016. Pobre Congresso. 
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