A menos que chova, o próximo Dia Mundial da Água, celebrado todos os anos em 22 de março, será uma segundafeira na qual pouca gente se dará conta do quanto a vida depende desse líquido que cai do céu, brota do chão e congela nos polos. Somos 6,8 bilhões de pessoas sobre a face da Terra, e a maioria de nós consumirá e desperdiçará centenas de litros do líquido nessa data, enquanto um bilhão sofrerá o flagelo da sede. O segundo grupo, com certeza, tem um lembrete diário da importância da celebração do dia 22. Num futuro não muito distante, o número de pessoas que não esquecerão o significado desse dia vai se multiplicar como nunca antes na história. Estamos em uma verdadeira armadilha ambiental: em questão de décadas, as reservas de água potável de continentes como a África e a Ásia não serão mais suficientes para suprir a demanda de uma população que cresce em ritmo acelerado. De acordo com especialistas da ONU e de órgãos independentes, se a curva de crescimento da população mundial se mantiver, vamos chegar à marca de 15 bilhões de humanos já na metade deste século.E o total de sedentos baterá na casa dos 5,5 bilhões. Para evitar essa situação e fazer uma espécie de reforma aquária global, é preciso combater hábitos incorporados aos confortos da vida moderna, principalmente nos países desenvolvidos. Um exemplo vem do Instituto de Pesquisas Geológicas dos Estados Unidos. Segundo cálculos da instituição, são necessários 380 litros diários de água para manter um único americano vivo, feliz e hidratado. A estimativa leva em conta todas as formas de consumo, do volume gasto em um banho ao empregado na criação do gado transformado no hambúrguer da hora do almoço. Enquanto no Hemisfério Norte a escassez pode ser diminuída com mudanças de hábito, do lado de cá do Equador, além de medidas parecidas, é preciso combater problemas típicos do mundo em desenvolvimento. “Hoje, cerca de 40% do total mandado para a rede de distribuição do Brasil é perdido, seja por vazamentos, seja por roubos”, diz o engenheiro químico Marcelo Morgado, assessor de meio ambiente da Sabesp, a companhia estatal de abastecimento do Estado de São Paulo. “Em alguns Estados, o desperdício pode chegar a 70%, pois muitos são deficientes na medição”, completa. Essa perda não tem reposição.Diferentemente de plantas e animais, a água não pode ser cultivada, criada ou multiplicada. Temos hoje a mesma quantidade do líquido que havia no tempo em que os dinossauros eram os senhores do planeta. Um meteoro conseguiu acabar com esses répteis gigantescos, mas não foi suficiente para pôr fim à vida por aqui. Isso porque não extinguiu a água e seu talento para deixar a vida boiar sobre si. “Todas as reações químicas que ocorrem em qualquer organismo vivo estão associadas a ela”, afirma a bióloga Lucile Floeter Winter, professora do Instituto de Biociências da USP. Chamado há séculos de “solvente universal”, o líquido inodoro, incolor e sem sabor forma quase 100% de alguns organismos e compõe até 78% do corpo humano. “O DNA só existe por causa da água. Toda a evolução da vida obedeceu à química imposta por ela”, explica Lucile. Essa é a razão pela qual as notícias de que algum telescópio ou observatório encontrou rastros de água em um planeta distante são tão comemoradas pelos cientistas. Só assim, com o líquido por perto, a vida como a conhecemos pode surgir. Quer seja ela visível apenas por microscópio, quer seja de tamanho considerável e capaz de se comunicar como nós. Não é uma busca fácil. É preciso encontrar planetas tão afortunados quanto a Terra. Estamos localizados no centro da chamada “faixa habitável” do conjunto de objetos que orbitam nossa estrela.Mais precisamente, no ponto exato em que a energia emitida pelo Sol pôde se espalhar de forma harmoniosa e esquentar a sopa primordial de elementos químicos na qual a vida surgiu. Uma oscilação de 5% na órbita faria da Terra um deserto como Marte ou um inferno de dióxido de carbono como Vênus. Por instinto, necessidade ou raciocínio, todo ser vivo sabe como é bom ter água por perto. Os primeiros bandos de Homo sapiens, por exemplo, ergueram suas tribos à beira de mananciais. Cerca de seis milênios antes de Cristo – quando a civilização surgiu na Mesopotâmia –, os rios Tigre e Eufrates serviram de berço para a primeira sociedade da história. O Egito dos faraós só pôde ser erguido graças à abundância que jorrava do Nilo. Na medida em que a civilização foi evoluindo, cada vez mais os pensadores desenvolveram teorias sobre a importância fundamental do líquido. O filósofo grego Empédocles qualificou a água como um dos quatro elementos básicos da natureza – ao lado de terra, fogo e ar – e fonte de toda forma de vida. No mundo oriental, a filosofia chinesa tradicional e os taoístas também qualificaram a substância como uma das forças primordiais de todo o Universo. O caráter simbólico da água não inspirou apenas os estudiosos orientais ou da Grécia Antiga. “Ela é fundamental no batismo da Igreja Católica, nem que seja apenas uma gota. Não basta dizer ‘eu te batizo em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo’”, afirma Fernando Altemeyer, professor de ciências da religião da PUC-SP. Segundo ele, o ritual realizado na pia batismal representa um sacramento básico. “É como se a pessoa estivesse saindo de um novo útero.Nascemos pela água e nela nos limpamos, tirando a sujeira das gerações passadas e nos redimindo do pecado original”, diz o teólogo. Além do cristianismo, religiões seculares como o hinduísmo, o islamismo, o judaísmo e o xintoísmo usam a substância em seus ritos. Além de questões antropológicas, filosóficas e religiosas, a água vem ocupando a agenda de cientistas e políticos de todo o mundo. Enquanto os primeiros usam a tecnologia para criar formas de preservar a substância (leia o texto “Problema solúvel” a seguir), os segundos criam novas leis para proteger reservas e distribuir o líquido de forma mais igualitária. O governo da província australiana de Victoria, por exemplo, já determinou regras rigorosas para o uso consciente da água. Entre elas estão a limitação da utilização de sistemas de irrigação automáticos, a proibição do emprego de mangueiras na limpeza de pisos pavimentados e o controle da construção de novas piscinas por meio de autorizações específicas. Nada pode ser mais precioso do que isso. Em vez de discussões sobre o que fazer com a riqueza proveniente do petróleo da camada do pré-sal, uma preocupação mais pertinente é saber como manter campos irrigados, animais saudáveis e humanos hidratados pelas próximas décadas.Hoje, no Brasil, 70% do abastecimento é direcionado para a atividade agrícola, 20% é consumido pela indústria e 10% vai para as residências. Em um cenário no qual a água se converte em uma das principais commodities do mercado mundial, mais uma vez os nossos recursos naturais colocam o Brasil em vantagem, desde que tenhamos a sabedoria de protegê-los.Um passo já foi dado: “O País tem um importante arcabouço jurídico criado com a Lei Nacional das Águas, de 1997”, diz o biólogo Samuel Barreto, da ONG WWF-Brasil. Entre outros pontos, a legislação deixa claro que a substância é um bem público que não pode ser privatizado. Está chegando o dia em que os líderes mundiais se darão conta de que o líquido mais precioso do nosso planeta é transparente.
20 de mar. de 2010
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