O presidente da comissão da ONU que investiga as violações de direitos humanos na Síria, Paulo Sérgio Pinheiro, diz que as Nações Unidas demoraram a agir para conter o Estado Islâmico, que ele acusa de fazer uma "pornografia do terror"
Por Paula Rocha
Na terça-feira
16, o brasileiro Paulo Sérgio Pinheiro, presidente da Comissão
Independente Internacional de Investigação sobre a Síria, apresentou ao
Conselho de Direitos Humanos da ONU, em Genebra, o mais recente
relatório sobre o conflito no país árabe. Além de apontar o crescimento
do poder de atuação do grupo conhecido como Estado Islâmico (EI), que
Pinheiro acusa de praticar a “pornografia do terror”, o documento traz
ainda depoimentos de 12 vítimas da guerra na Síria, civis que tiveram
suas vidas destruídas pelo combate que já dura três anos e, segundo o
especialista, pode estar longe de acabar. De Roma, Pinheiro falou à
ISTOÉ sobre a questão.

O brasileiro Paulo Sérgio Pinheiro, presidente da Comissão
Independente Internacional de Investigação sobre a Síria,
acusa o Estado Islâmico de fazer "pornografia do terror"
ISTOÉ – O que o novo relatório da Comissão apresenta sobre o avanço do grupo conhecido como Estado Islâmico?
Paulo Sérgio Pinheiro – O
Estado Islâmico controla hoje um terço da Síria e parte do Iraque, de
forma contígua, sem respeitar fronteiras. Recentemente, o grupo foi
definido como uma organização terrorista pelo Conselho de Segurança da
ONU, pois seus combatentes impõem sua ideologia pelo terror.
Basicamente, eles matam qualquer um que não compartilhe de sua visão
extremista. E praticam a pornografia do terror, utilizando as mídias
eletrônicas de forma muito sofisticada para divulgar suas atrocidades.
Além da execução pública dos dois jornalistas americanos e de um agente
humanitário, o EI tem cometido massacres como o assassinato de 200
soldados do governo de Bashar al-Assad e incontáveis mortes de civis.
Talvez a faceta mais cruel do EI seja deliberadamente expor crianças à
violência. Meninos são encorajados a assistir às execuções e a ver de
perto corpos dispostos em crucifixos em praças públicas. O grupo
prioriza a doutrinação de jovens. No mês passado, crianças armadas foram
vistas em pontos de inspeção do EI na região de Al-Hasakah, no nordeste
da Síria.
ISTOÉ – Como o Estado Islâmico se tornou tão relevante em tão pouco tempo?
Pinheiro – O EI tem
crescido desde 2012, com a entrada dos jihadistas, combatentes mais
extremistas, na Síria. Eu coordeno a Comissão de Investigação desde 2011
e, no ano seguinte, já havíamos chamado a atenção do Conselho de
Segurança da ONU para a presença de combatentes estrangeiros no país.
Hoje o EI tem por volta de três mil combatentes de 81 nacionalidades.
Eles não caíram do céu, nem se agruparam de repente. Começaram a atuar
ligados à Al-Qaeda. Depois, se separaram. A Al-Qaeda foi quem rompeu com
o EI, para você ver o nível de radicalismo desse grupo, mais radical do
que a própria Al-Qaeda.
ISTOÉ – E quem financia esse grupo terrorista?
Pinheiro – Há vários
financiadores. Eu não posso citar os países, mas, basicamente, quem
banca o EI são as monarquias do Golfo, que são sunitas e têm interesses
muito antigos na Síria. A Síria sempre foi um polo independente na luta
contra Israel e hoje é ligada ao Irã. Essas monarquias do Golfo querem
que a Síria se desligue do Irã. É um conflito muito regional. Quem
domina a Síria é uma vertente dos xiitas, que são os alauítas, minoria à
qual pertence o presidente Assad. E os membros do EI são todos sunitas.
No início, o conflito na Síria não era uma luta tão sectária. Mas hoje a
presença do EI é o ápice de uma luta entre sunitas e o governo, que é
xiita. Isso posto, o próprio EI tem recursos extraordinários. Eles
saqueiam bancos e exploram e contrabandeiam petróleo. Têm recursos,
armas e experiência em combate, e até pagam salários aos combatentes.
ISTOÉ – Qual é a responsabilidade
de países como os Estados Unidos e os membros da União Europeia na
ascensão do Estado Islâmico?
Pinheiro – Os EUA e a
Europa, assim como o Qatar, a Arábia Saudita, os Emirados Árabes Unidos e
a Turquia, em determinado momento, apoiaram os grupos armados
contrários ao governo de Assad. Em 2011, o início desses movimentos na
Síria parecia uma vertente da Primavera Árabe, mas que logo foi
militarizada. Se no começo esses grupos eram moderados, hoje são todos
militarizados. Nenhum tem um projeto claro de democracia. Os desejos
nutridos no berço dessa revolução síria se perderam. O objetivo do EI
hoje é a restauração do califado, algo que terminou com o fim do Império
Otomano. Eles querem criar uma autoridade que irá confrontar
diretamente a Arábia Saudita, atual guardiã de Meca e de lugares
sagrados para os islâmicos. Os membros do grupo terrorista contestam
essa autoridade. Isso é curioso, já que muitos combatentes sauditas
estavam na origem desses grupos radicais na Síria.

"Hoje quem banca o Estado Islâmico são as monarquias do
Golfo Pérsico, que são muitas e têm muitos interesses na Síria"
ISTOÉ – O novo relatório da
Comissão também contém 12 depoimentos de vítimas da guerra na Síria. O
que esses relatos revelam sobre o conflito?
Pinheiro – Os relatos
revelam histórias terríveis de sequestro, tortura, abuso sexual e até
morte. Entre os depoimentos está o de um menino ferido em um ataque de
míssil a uma escola em Aleppo, o de um homem preso e torturado pelo
governo sírio em Damasco, e o de uma mulher grávida que perdeu o marido e
os parentes e ficou abandonada à própria sorte. Essas são apenas
algumas das mais de duas mil histórias que coletamos com refugiados e
civis que conseguiram fugir da Síria. Entre todos os relatos, fica
evidente que, nos últimos três anos, a dor, a raiva e a desilusão dos
civis sírios só cresceu.
ISTOÉ – O que a Comissão pode fazer para tentar resolver o conflito na Síria?
Pinheiro – As comissões de
investigação não são um tribunal, não condenam ninguém, nem fazem
investigações criminais. Fazemos apenas a reconstituição de alegações e
uma lista confidencial de perpetradores, que podem servir a uma futura
investigação criminal ou ser usadas pelo Tribunal Penal Internacional.
Há três anos a comissão tem documentado os crimes cometidos na Síria,
mas, infelizmente, até agora não há nenhuma perspectiva de punição. A
impunidade é generalizada. Ninguém respeita as regras de combate, nem o
governo da Síria, nem nenhum grupo armado. Todos cometem crimes de
guerra, crimes contra a humanidade e violação dos direitos humanos. E,
no entanto, ninguém é punido porque o Conselho de Segurança da ONU não
transmite o caso da Síria ao Tribunal Penal Internacional, pois os cinco
membros permanentes (China, França, Rússia, Reino Unido e EUA) não
chegam a um consenso. A Rússia e a China são contra. Já brifei o
Conselho de Segurança quatro vezes desde 2012, mas eles não têm
conseguido convencer os dois países. E a inércia do Conselho de
Segurança beneficia principalmente o Estado Islâmico.

"Obama está hesitante, mas a meu ver está agindo certo.
Atacar o Estado Islâmico com bombardeiros afetaria muito a população civil"
ISTOÉ – O presidente Barack Obama tem sido criticado por não combater militarmente o EI. O que o sr. acha disso?
Pinheiro – O presidente
Obama está hesitante, mas, a meu ver, ele está agindo certo. Atacar o EI
com bombardeios afetaria muito a população civil. Sem um acordo com o
governo Assad, qualquer ação militar estrangeira na Síria seria muito
complicada e limitada. Por enquanto não há indicação de que o governo
americano irá de fato despachar tropas terrestres para a Síria.
Oficialmente, a posição dos EUA continua sendo a de não enviar soldados
para lá. E o EI é uma bomba de efeito retardado. Na medida em que forem
atacados no Iraque, irão voltar para a Síria. Se forem atacados no
Iraque e na Síria, os combatentes voltarão para os países de origem,
especialmente europeus, o que fatalmente irá ocorrer, já que a
identificação e o controle desses indivíduos são muito difíceis.
ISTOÉ – E como o sr. vê a posição do Brasil nessa questão?
Pinheiro – É muito clara a
posição do governo brasileiro de que não há solução militar para o
conflito na Síria. O Brasil compartilha com a visão da Comissão de que a
negociação política tem de recomeçar. Todas as propostas de derrubada
do governo Assad foram equivocadas. Três anos depois ele ainda está no
poder. Se nada for feito, essa guerra pode continuar por dez anos, e aí a
Síria seria destruída.
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