No seu primeiro discurso depois de sair
 da cadeia, Lula demonstra vontade de inflamar as massas, enquanto o 
governo tenta mandá-lo de volta para a prisão por ameaça à ordem 
pública. A tensão política que acomete o País vai se intensificar e 
coloca em risco a democracia
          
                        
Lula é carregado na frente do
 Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo: ex-presidente quer o povo 
nas ruas para combater o governo (Crédito: Carlos Vera/Colectivo2+)
 
 
Uma coisa é certa: a saída do ex-presidente Lula da prisão transforma
 completamente o jogo político e a polarização tende a avançar para o 
radicalismo. A disputa entre extremos que se retroalimentam e colocam o 
Brasil atualmente em um estado de beligerância permanente vai se 
intensificar e pode ameaçar a própria democracia. Haverá agora um embate
 direto entre duas lideranças raivosas que não poupam esforços para 
convencer a população de seus projetos de poder. De um lado, Jair 
Bolsonaro e sua política conservadora e truculenta, que aumenta a 
desigualdade e ameaça direitos sociais, e de outro, Lula, ressentido e 
se julgando injustiçado pelos 580 dias na prisão, voltando à cena com um
 discurso de enfrentamento ao governo e cheio de vontade de atacar a 
política neoliberal do ministro Paulo Guedes. Há uma escalada radical e é
 difícil vislumbrar o que se encontrará no fim do túnel. O certo é que 
esse cenário de crispação não levará à solução de nenhum problema 
brasileiro. Lula quer detonar as iniciativas de Bolsonaro, pensando nas 
eleições municipais do ano que vem e na presidencial de 2022. Bolsonaro 
avisa que pode usar a Lei de Segurança Nacional (LSN), que ele quer 
ativar ao seu bel prazer, para inibir os movimentos populares e 
estabelecer, inclusive, um regime de exceção.
Tensão social
Em liberdade, Lula tem um plano de ação e de renascimento concentrado
 em sua própria figura demiúrgica. Ainda na cadeia, em Curitiba, ele 
anunciou que pretende fazer uma longa caravana pelo Brasil e envolver a 
população com seu projeto de oposição. Com bom preparo físico – ele diz 
que corre 10 quilômetros por dia – vai percorrer o País para propagar 
seu papel de “fio condutor da pacificação nacional”. Seu projeto é 
circular por vários estados e se vender como um líder salvacionista, 
capaz de conter a fúria destruidora de políticas sociais de Bolsonaro. 
Seu primeiro discurso em liberdade, na frente da sede do Sindicato dos 
Metalúrgicos de São Bernardo do Campo, sábado 9, mostrou, porém, a 
intenção evidente de Lula de aumentar a tensão social em suas andanças 
pelo País ao invés de trabalhar pela pacificação. A tendência é que seu 
discurso acirre a insatisfação popular e deflagre uma série de 
movimentos organizados contra o governo. O plano de Lula só será bem 
delineado no próximo dia 22, quando ele fará um “discurso para o Brasil”
 no Congresso Nacional do PT, em São Paulo. Ali ficará claro qual será 
sua verdadeira atuação oposicionista, se incendiária ou conciliadora.
O tom de sua oratória estará mais ajustado. Outra ideia que circula é
 a montagem de um governo paralelo, como o PT fez em 1990, depois da 
eleição de Fernando Collor, formado por militantes notáveis de partidos 
de esquerda para questionar cada uma das decisões tomadas pelo governo 
Bolsonaro. A marcação será cerrada.
 
Ressentido pelos 580 dias na prisão, Lula volta à cena com um discurso de enfrentamento e ataca a política de Paulo Guedes
Alta rejeição
Nos dois extremos do campo político, o que se prevê é uma 
aglutinação, em torno de seus grandes líderes, de forças que se 
dispersaram depois da eleição de 2018 e não conseguem superar seus 
conflitos. A volta de Lula ao debate e aos palanques torna o PT mais 
aguerrido e entusiasmado e abre a possibilidade de união de grupos e 
partidos de esquerda. Tudo indica que o espectro das coligações será 
menos amplo do que o necessário para uma oposição consistente e capaz de
 atrair o eleitor moderado. O PDT de Ciro Gomes, que se recusa a 
conversar com o ex-presidente, é uma baixa imediata. Da Rede 
Sustentabilidade e de sociais-democratas nem se fala. Embora Lula só 
pense no PT, ele se mostra disposto a fazer acordos imediatos com o PSOL
 e o PC do B na disputa pelas prefeituras, em especial pela do Rio de 
Janeiro, onde o deputado federal Marcelo Freixo (PSOL) será o candidato 
da esquerda. Chega a falar em ser um impulsionador da “unidade 
nacional”, mas isso soa como pura retórica. A sociedade está rachada e 
Lula ainda sofre uma grande rejeição. Poderá fazer barulho, mas é pouco 
provável que desperte a maioria silenciosa e os “isentões” para suas 
causas.
Para Bolsonaro, a reaparição de Lula também pode levar a um 
fortalecimento de alianças com outros grupos e partidos de direita que 
começavam a ficar sem um eixo de ação. Agora eles têm contra quem 
pregar. Bolsonaro vem perdendo aliados, por causa de suas posições 
extremas, das interferências indevidas de seus filhos na rotina do 
governo e da sua aversão aos ritos da democracia. Seu partido, o PSL 
rachou e apoiadores, como o Movimento Brasil Livre (MBL), se afastaram 
do governo. Agora o presidente anuncia a criação de um novo partido, o 
Aliança pelo Brasil, possivelmente com o mesmo espírito autoritário da 
Aliança Renovadora Nacional (ARENA), braço político da ditadura. Será a 
sigla da família Bolsonaro e quem quiser que se una a ela. Trinta e um 
dos 53 dos deputados do PSL revelaram intenção de se juntar ao novo 
partido. Essa iniciativa de criação da Aliança pelo Brasil é mais uma 
demonstração de que Bolsonaro está se lixando para o jogo político e só 
quer fazer as coisas da sua própria maneira, que costuma ser despótica. 
Um dia depois do discurso de Lula em São Bernardo, o movimento Vem pra 
Rua e o Partido Novo convocaram seus militantes a se manifestar contra a
 decisão do STF de acabar com a prisão em segunda instância, que 
beneficiou Lula. Para o Partido Novo, a decisão do STF representa um 
retrocesso na “luta contra a impunidade”. Protestos foram realizados em 
dez capitais do País e levaram milhares de adversários do líder petista 
às ruas.
Debate interno
A saída de Lula da cadeia tem sido um assunto de intenso debate 
interno no PT. Há uma corrente que prega alguma contenção nas suas 
palavras ou mesmo o retorno do “Lulinha paz e amor” numa tentativa de 
atrair os setores da classe média desiludidos com o atual governo. 
Outros pregam a máxima contundência contra Bolsonaro e suas ideias.
A cúpula do partido considerou o discurso na sede do Sindicato do 
Metalúrgicos excessivo em alguns pontos, embora creditando as palavras 
mais duras ao fato do ex-presidente estar emocionado após deixar a 
cadeia. Avalia-se que ele terá vários julgamentos pela frente e não vale
 a pena tumultuá-los ou se indispor com militares, por exemplo. Causou 
incômodo quando Lula disse que o presidente nunca trabalhou e que 
arrumou uma confusão no Exército para se aposentar cedo. Essa foi uma 
das provocações questionadas no partido. Não houve, contudo, qualquer 
objeção ao trecho do discurso em que Lula confrontou Bolsonaro e disse 
que “ele foi eleito para governar para o povo brasileiro e não para 
governar para os milicianos do Rio de Janeiro”.
Da fala de Lula na frente do sindicato, o que mais incomodou o 
governo foi sua convocação para que a população repita os acontecimentos
 do Chile no Brasil, interpretada por Bolsonaro como uma tentativa de 
subverter a ordem institucional. Lula, no caminho oposto ao da 
pacificação, convocou a militância para reagir ao governo Bolsonaro e 
declarou que é preciso “atacar” e não apenas se defender. “É uma questão
 de honra a gente recuperar esse País. A gente tem que seguir o exemplo 
do povo do Chile, do povo da Bolívia. A gente tem que resistir. Não é 
resistir. Na verdade, é lutar, é atacar e não apenas se defender. A 
gente está muito tranqüilo”, declarou. Para o governo, essas palavras 
foram encaradas como subversão e Bolsonaro determinou que alguns de seus
 aliados fossem à Justiça contra o ex-presidente. Três pedidos de prisão
 preventiva foram feitos à Procuradoria Geral da República (PGR). O 
primeiro veio do deputado Major Olimpio (SP), que entrou com uma 
representação na PGR com base na LSN, em que alega tentativa de 
incitação da violência contra a ordem pública. Os deputados do PSL 
Ubiratan Sanderson (RS) e Carla Zambelli (SP) protocolaram outro pedido 
do tipo, assim como o Movimento Brasil Livre (MBL), que havia rompido 
com o governo. Na quarta-feira 13, o procurador-geral, Augusto Aras, 
disse que os pedidos de prisão preventiva de Lula foram encaminhados 
para o Ministério Público de São Bernardo, onde ele mora. Para os 
aliados de Lula, ele só exerceu seu direito à liberdade de expressão.
Mídias sociais
Os primeiros movimentos de Bolsonaro nas mídias sociais depois da 
saída de Lula da cadeia foram econômicos. Ele só fez três postagens e 
seu filho Carlos, outras duas, se referindo ao ex-presidente sem citar 
seu nome. Na sequência, Carlos abandonou temporariamente as redes. Em 
uma de suas postagens ofensivas, Bolsonaro disse que começou “há poucos 
meses a nova fase de recuperação do Brasil e não é um processo rápido, 
mas avançamos com fatos”.
E completou: “Não dê munição ao canalha, que momentaneamente está 
livre, mas carregado de culpa”. Lula não chamou Bolsonaro de canalha. 
Destinou o adjetivo apenas para Moro, a quem culpa diretamente por sua 
ida à prisão. “Preciso provar que o juiz Moro não era um juiz. Era um 
canalha que estava me julgando”, disse. Em outro tuíte, Bolsonaro 
convocou seus seguidores a se organizarem. “Amantes da liberdade e do 
bem, somos a maioria.
Não podemos cometer erros. Sem um norte e um comando, mesmo a melhor 
tropa se torna num bando que atira para todos os lados, inclusive nos 
amigos”, declarou. Finalmente disse que não responderá “a criminosos que
 por ora estão soltos. Meu partido é o Brasil!”. E completou: “Não vamos
 dar espaço, nem contemporizar com presidiários”.
Ao longo da semana, Bolsonaro se dedicou basicamente a promover sua 
própria agenda e obras do governo federal, principalmente no Nordeste, 
região que se apresenta como um campo prioritário da batalha entre 
direita e esquerda. Foi a única região em que o PT venceu a eleição 
presidencial e é o lugar onde Bolsonaro encontra mais dificuldades para 
avançar com suas políticas conservadoras e conquistar aliados. Para 
tentar reverter essa tendência e chegar mais perto do povo, ele foi a 
Campina Grande (PB) inaugurar o conjunto residencial Aluízio Campos, do 
Programa Minha Casa, Minha Vida, criado pela ex-presidente Dilma 
Rousseff. Lula, que pensa, inclusive, em mudar sua residência para o 
Nordeste, visitou dois estados. Na quinta-feira 14, foi a Salvador (BA) 
para participar da reunião da Executiva Nacional do PT. E no domingo 
estava programada uma viagem para Recife (PE), onde compareceria ao 
festival nacional de música Lula Livre.O festival, agora orientado para 
celebrar sua libertação, estava programado desde antes de Lula deixar a 
prisão.
Lei de segurança
A sensação é de que o governo quer que Lula opte pelo caminho 
incendiário e da contundência verbal para encontrar um pretexto para 
reprimir qualquer movimento popular. Bolsonaro tem dado sucessivas 
demonstrações de incômodo com a democracia e isso ficou mais evidente 
quando um dos filhos do presidente, o deputado federal Eduardo Bolsonaro
 considerou a hipótese, “caso a esquerda radicalize”, de um novo AI-5, 
medida autoritária que intensificou a repressão na época da ditadura, 
fechou o Congresso e suspendeu garantias constitucionais. Eduardo foi 
apoiado pelo pai e pelo ministro-chefe do Gabinete de Segurança 
Institucional, general Augusto Heleno. O general, por sua vez, 
incorporou a voz do filósofo Olavo de Carvalho, ideólogo do governo, que
 prega a destruição da esquerda no Brasil e em toda a América Latina. Na
 segunda-feira, depois das palavras de Lula, Bolsonaro afirmou que “a 
lei de Segurança Nacional está aí para ser usada. Alguns acham que os 
pronunciamentos, as falas desse elemento, que por ora está solto, 
infringem a lei. Agora nós acionaremos a Justiça quando tivermos mais do
 que certeza de que ele está nesse discurso para atender seus 
objetivos”, disse Bolsonaro.
Nos dias que antecederam a libertação de Lula, Bolsonaro, temendo 
protestos populares e violência nas ruas, ordenou que o Exército ficasse
 de prontidão para reprimir protestos que poderiam eclodir no País. 
Antes de decisão do STF, o presidente informou ter conversado com o 
ministro da Defesa, general Fernando Azevedo e Silva, sobre a 
necessidade de preparar as forças militares para algum tipo de convulsão
 social. “Não podemos ser surpreendidos, temos que ter a capacidade de 
nos antecipar a problemas”, disse. “Conversei com o ministro sobre a 
possibilidade de ter movimentos como tivemos no passado, parecidos com o
 que está acontecendo no Chile, e a gente se prepara para usar o artigo 
142, que é pela manutenção da lei e da ordem”, disse Bolsonaro. Parece 
que o governo teme a influência política de Lula e só espera um pretexto
 para começar a usar a força. Se Lula e os grupos mais radicais do PT 
entrarem no jogo de Bolsonaro, há o sério risco do jogo político evoluir
 para uma guerra campal. O importante que a polarização não ultrapasse 
os limites do discurso e do debate de ideias. E não descambe para 
qualquer tipo de violência.