Ao desrespeitar uma decisão do STF, a
mais alta Corte da Justiça brasileira, o presidente do Senado Renan
Calheiros colocou o País à beira de uma crise institucional sem
precedentes. A questão é como seguiremos daqui para frente
Ameaça à democracia Renan demonstrou total descompromisso institucional, ao se recusar a receber o oficial de Justiça
Aguirre Talento e Ary Filgueira
José Renan Vasconcelos Calheiros, 61 anos, poderia ser apenas
um cidadão brasileiro sujeito aos direitos e deveres estabelecidos pela
Constituição. Dentre eles, a obrigação de cumprir determinações da
Justiça, um dos Poderes que sustentam a República e o Estado Democrático
de Direito. Mas Renan Calheiros (PMDB-AL) é presidente do Senado e,
como tal, deu um tapa na cara da sociedade na última semana. Mostrou que
não tem a obrigação de cumprir ordens do Supremo Tribunal Federal
(STF), e ainda forçou o órgão a recuar e criar uma “meia sola
constitucional”, nas palavras de um dos ministros, para que pudesse
continuar no comando do Senado.
Renan se recusou a aceitar uma decisão liminar do ministro do STF
Marco Aurélio Mello que o afastava do cargo e provocou uma crise
institucional que colocou em risco a estabilidade da democracia e
representou um verdadeiro escárnio à sociedade, principalmente ao
cidadão comum que cumpre todos os seus deveres. O exemplo é péssimo: se
uma decisão da Justiça me desagrada, posso desrespeita-la? “Qualquer
liminar concedida por um juiz neste país não precisará ser cumprida.
Precedente: STF”, ironizou um procurador da Operação Lava Jato. “A
Constituição não trabalha com desobediência à ordem judicial. A solução
está no cumprimento da decisão”, sentenciou o ex-ministro do Supremo
Carlos Ayres Britto, em entrevista à ISTOÉ. Surpreendentemente, seus
ex-colegas de tribunal não impuseram nenhuma punição a Renan pelo
descumprimento da ordem judicial e ainda costuraram um acordão para
salvar sua permanência na Presidência da Casa–mesmo sendo réu em uma
ação penal e ainda responder a 12 inquéritos, a maioria da Lava Jato. Desprezo às instituições
A origem da celeuma está em um julgamento do Supremo de 3 de novembro.
Naquele dia, seis ministros da Corte formaram maioria no entendimento de
que um réu não poderia continuar presidindo a Câmara ou o Senado, por
estar na linha sucessória da Presidência da República. O julgamento,
porém, foi interrompido por um pedido de vistas do ministro Dias
Toffoli. Antes que a discussão fosse retomada, um outro julgamento
realizado pelo Supremo em 1º de dezembro tornou Renan réu por peculato
(desvio de recursos públicos) em uma ação penal que o acusa de ter
despesas pessoais pagas por uma empreiteira. Como, no julgamento
anterior, a maioria sinalizava que um réu não poderia ficar na linha
sucessória da Presidência da República, a consequência natural seria
mesmo o afastamento de Renan. Talvez se ele fosse um brasileiro comum. ACORDÃO Ministros do STF participam de uma trama para salvar a pele de Renan
Autora da ação que questionou a linha sucessória da Presidência, a
Rede Sustentabilidade então provocou o ministro Marco Aurélio Mello,
relator, a dizer se Renan poderia continuar no cargo após ter se tornado
réu. Começaram aí os atropelos. O ministro Marco Aurélio tomou como
base um julgamento inacabado para conceder uma decisão liminar
(provisória) afastando o presidente do Senado, na noite da segunda-feira
5. Daí em diante, a situação institucional do País só piorou, chegando à
beira do colapso. O oficial de Justiça Wessel Teles de Oliveira se
dirigiu à residência oficial de Renan ainda na noite da segunda e foi
alvo do menosprezo que o peemedebista destina às instituições. Apesar de
enxergar Renan da porta da residência, uma funcionária lhe disse que
ele não se encontrava. “Ato imediato, afirmei que a informação não
corresponderia à verdade, uma vez que conseguiria apontar para a figura
do senador caminhando em sentido oposto ao meu”, relatou o oficial de
Justiça. A assessora do peemedebista pediu que ele fosse às 11h do dia
seguinte intimar-lhe no Senado. Lá, o advogado-geral do Senado, Alberto
Cascais, entregou ao oficial de Justiça um comunicado da Mesa Diretora
do Senado no qual a instituição se recusava a cumprir a ordem judicial.
A Mesa Diretora é composta, dentre outros, pelo próprio Renan, pelo
primeiro vice-presidente Jorge Viana (PT-AC) e pelo segundo vice, Romero
Jucá (PMDB-RR). Todos assinaram o documento que afrontou o STF. Depois
disso, a crise entre os Poderes chegou ao ápice e começou a circular nos
bastidores a possibilidade de o Supremo mandar prender Renan pela
desobediência. Mas os ministros preferiram costurar um acordo nos
bastidores, em reunião comandada pela presidente do STF Cármen Lúcia,
que teve o aval dos senadores da base aliada, preocupados com o impacto
em votações de matérias de interesse do governo no Senado. Pelo
acertado, o plenário do Supremo tomaria uma decisão política para
preservar Renan Calheiros no comando do Senado. Em vez de ser punido,
ele foi premiado. A imagem transmitida à sociedade foi a pior possível.
Na quarta-feira 7, em um julgamento de cartas marcadas, o plenário do
Supremo decidiu por 6 votos a 3 manter Renan no comando. O entendimento
foi que ele não poderá ocupar a Presidência da República no caso de
viagem de Temer, mas também não precisa ser afastado da Presidência do
Senado. O voto do ministro Marco Aurélio foi esclarecedor: “O pulo
apontado como saída para o impasse, decorrente do fato de não se haver
respeitado decisão do Supremo, (…) fere de morte as leis da República,
fragiliza o Judiciário, significando prática deplorável. Ao fim, implica
a desmoralização ímpar do Supremo”. O procurador-geral da República,
Rodrigo Janot, também foi contrário à solução apresentada. “A
prerrogativa constitucional é do cargo, não é da pessoa, e problemas
pessoais não podem limitar as prerrogativas do cargo”, afirmou.
O episódio envolvendo Renan criou uma jurisprudência perigosa. Na
quinta-feira 9, o prefeito de Barreiras (BA) Antonio Henrique Moreira se
recusou a cumprir uma decisão liminar em favor do sindicato de
servidores do município que o obrigaria a repassá-los 1% da folha
salarial dos funcionários. Ao se negar a aceitar a medida judicial, o
prefeito fez questão de mencionar o precedente aberto pelo presidente do
Senado.
No fim da semana, o escárnio foi selado com a nota que o próprio
Renan divulgou após a decisão do STF: “É com humildade que o Senado
Federal recebe e aplaude a patriótica decisão do Supremo Tribunal
Federal. A confiança na Justiça Brasileira e na separação dos poderes
continua inabalada”. Confiança, porém, apenas quando a decisão lhe
favorece. “Entendi que você é um juiz de merda!” SENHA O ministro Celso de Mello antecipou o voto, uma senha de que o acordão estava a caminho
O fato de o decano do Supremo Tribunal Federal, ministro Celso de
Mello, ter sido o primeiro a votar na quarta-feira 7 pode ser
interpretado como uma espécie de senha para disparar o acordão negociado
nas horas que antecederam a seção. Afinal, fica muito mais fácil para
os demais ministros justificarem seus votos, quando seguem o
entendimento do mais experiente da Corte. E, Mello, votou de forma
contrária ao que já havia manifestado em novembro, quando o STF decidia
se um réu poderia ou não ocupar a linha sucessória da Presidência da
República. Na ocasião, cinco dos 11 ministros já haviam votado a favor
dessa tese, quando Dias Toffoli pediu vistas, paralisando o processo.
Mesmo assim, logo depois do posicionamento de Toffoli, Mello resolveu
declarar seu voto, o que não é comum na rotina do Tribunal. O gesto, no
entanto, tinha um significado político: apesar do pedido de vistas, já
havia maioria a favor da tese. Na quarta-feira, o decano mudou de ideia e
votou pela permanência de Renan Calheiros na presidência do Senado,
mesmo já sendo réu. Quem conhece os bastidores do STF sabe que essa não a
primeira vez que o decano muda de opinião e vota de acordo com as
conveniências do momento.
Na semana passada o site “O Antagonista” relembrou uma história
contada no livro “Código da Vida”, de Saulo Ramos, ex-ministro do
presidente José Sarney. Saulo relata uma desilusão sofrida com Celso de
Mello. Quando Sarney decidiu candidatar-se a senador pelo Amapá, o caso
foi parar no STF, já que os adversários impugnaram a candidatura. Mello
votou pela impugnação, mas depois telefonou para Saulo para explicar-se.
Saulo quis saber por que ele mudou o voto.
— É que a Folha de S.Paulo noticiou que Sarney tinha os votos certos
dos ministros e citou meu nome como um deles (…) Votei contra para
desmentir a “Folha”.
— Você votou contra o Sarney porque a “Folha” noticiou que você votaria a favor?
— Exatamente. O senhor entendeu?
— Entendi que você é um juiz de merda. “Não participei do clube do Bolinha ou da Luluzinha” MINISTRO CELEBRIDADE Marco Aurélio Mello recebeu pedidos de selfies ao desembarcar no Rio
Na noite de terça-feira 6, quando já se noticiava que havia um acordo
para a manutenção de Renan Calheiros na presidência do Senado, o
ministro Marco Aurélio Mello acrescentou no texto de seu voto um
chamamento dos colegas à responsabilidade. “Disse que eles eram autores
de suas biografias. E que as gerações futuras são implacáveis”, disse
Marco Aurélio a ISTOÉ. Após o julgamento, o ministro que concedeu a
liminar pelo afastamento do peemedebista foi ovacionado no aeroporto de
Brasília e recebeu pedidos de selfies no Santos Dumont.
O sr. acredita que o STF ficou desmoralizado?
O Supremo ficou fragilizado. Falei muito nisso no voto, realcei para os
colegas terem presentes as consequências. Fico triste porque agora vamos
ter manifestações contra o STF.
Houve alguma reunião anterior ao seu voto?
Se houve acordo, eu não participei do clube do Bolinha ou do clube da
Luluzinha. Não participo dessas reuniões e me pronuncio segundo minha
consciência e nada mais. Não ocupo cadeira voltada a relações públicas.
Foi comentado que, ao conceder a liminar, o sr. teria jogado para a plateia.
Se eu jogasse para a plateia, eu não teria tanto voto vencido. Seria aquele que acerta sempre.
Mas o sr. acha que errou?
Não errei. Fui vencido, mas não convencido.
Como o sr. avalia a desobediência do senador Renan em não acatar a sua liminar?
É o fim. É impensável. É crime.
Mantido no poder, fica notório o poder de Renan Calheiros?
Tudo isso revelou que ele tem um poder enorme. Quem sabe seja realmente um anjo, e todos nós estejamos com uma visão equivocada.
Como o sr. recebeu a declaração do ministro Gilmar Mendes, que disse que sua decisão era indecente?
Eu fiquei perplexo. Foi gratuito. Se ele me acha maluco, Freud explica. Passou de todos os limites. (Gisele Vitória)
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