Decisão do STF mantendo poderes do Conselho Nacional de Justiça atende o clamor da sociedade por um Judiciário mais aberto e democrático. Ministros reconheceram que ninguém está acima da lei
Izabelle Torres
AVANÇO
O presidente do STF, Cezar Peluso (à frente), foi derrotado na tentativa de limitar o CNJ
Depois de dois dias de debates e mais de 12 horas de sessão, o Supremo Tribunal Federal restabeleceu os poderes do Conselho Nacional de Justiça para investigar desvios cometidos por juízes. Sob forte pressão da opinião pública, a mais alta corte do País se dividiu, mas, por seis votos a cinco, dobrou-se ao desejo da sociedade, que cobra mais rigor na fiscalização do Judiciário. Venceu o anseio por maior transparência e maior controle sobre um Poder que resiste a abrir mão de seus privilégios e regalias. Agora, com a decisão histórica do STF, a má conduta de juízes e desembargadores será investigada pelo CNJ, independentemente do comprometimento das corregedorias dos tribunais de Justiça. “Até as pedras sabem que as corregedorias não funcionam quando se trata de investigar os próprios pares”, resumiu o ministro Gilmar Mendes num voto decisivo para o resultado final. Com a adesão de Mendes, que foi presidente do CNJ, prevaleceu a visão da ala progressista do Supremo, agora fortalecida com a chegada da ministra Rosa Maria Weber, que defendeu com veemência a maior abertura do Judiciário. Mas o triunfo da transparência, no julgamento do STF, mostrou mais do que o fortalecimento de uma corrente no tribunal. Revelou uma preocupação de toda a corte em estar mais alinhada com as demandas da sociedade. A vitória, portanto, foi de todos, com exceção daqueles que insistem em valer-se da função para cometer desvios e manter ou até ampliar privilégios injustificáveis. Prevaleceu a compreensão de que o que estava em jogo não era uma tentativa de desmoralização do Judiciário. O problema é que, diante de uma justa cobrança da sociedade por maior agilidade e por uma Justiça menos vertical e mais transparente, os magistrados reagiram como se fossem vítimas de uma conspiração. A interpretação equivocada era de que havia uma pressão para interferir no teor das decisões, quando o que sempre se criticou foram os excessos de regalias e prerrogativas no momento em que 1,7 mil magistrados estão sob investigação.
“Tentaram minar a minha credibilidade no Judiciário”
Eliana Calmon, corregedora do CNJ
Anunciado o resultado, uma das mais emocionadas era a corregedora do CNJ Eliana Calmon, que, nos últimos meses, tomou a linha de frente na luta pela preservação dos poderes do CNJ. Depois de correr o sério risco de ver todo seu empenho jogado fora, a brava ministra sentiu-se aliviada. “Tentaram minar a minha credibilidade no Judiciário.” Em outra decisão contrária ao corporativismo, o STF rejeitou a tentativa dos magistrados de serem julgados em sessões secretas, derrubando a ação da Associação dos Magistrados do Brasil contrária ao artigo do Regimento Interno do CNJ, que prevê julgamentos abertos. O sigilo era um dos pontos mais defendidos pela entidade de classe, que alegava que a imagem do Judiciário saía desgastada com a exposição dos juízes alvo de denúncias. O debate do tema foi marcado por referências a perseguições no tempo da ditadura e exemplos de desmoralização por conta das acusações sem fundamento. O ministro Luiz Fux, por exemplo, fez a defesa mais veemente do sigilo. “Lembro de uma sessão de que participei. Foi secreta. Na plateia tinha apenas o próprio juiz sentado, sozinho. Ele foi absolvido por unanimidade. Imaginaram que desgaste seria se fosse público? Aquela imagem ficou na minha cabeça”, contou. Mas Fux foi voto vencido. Permaneceu o entendimento de que os tempos mudaram e que a sociedade precisa conhecer o que se passa no seguidamente obscuro universo do Judiciário.
Dispostos a iniciar novos tempos na magistratura, muitos ministros defenderam a aprovação da Lei Orgânica da Magistratura (Loman), que passou 12 anos parada no Congresso até ser retirada pelo próprio STF para ser reformulada. Somente a nova lei poderá instituir a pena de demissão para magistrados corruptos, em lugar da altamente compensadora aposentadoria compulsória com salários integrais. O grande obstáculo para a reformulação da Loman tem sido as regras da Previdência da magistratura. Como os juízes incorporam gratificações muitas vezes injustificáveis ao longo da carreira, não há acordo para uma proposta e os anos passam sem que se aprove um texto final. Este ano o quadro pode mudar. “Quero priorizar esse debate quando estiver à frente do STF. Acho importante fecharmos um acordo sobre isso e formulamos uma lei que evite debates futuros sobre as prerrogativas dos órgãos e as punições para magistrados. Penso que o melhor é decidir isso rapidamente”, disse à ISTOÉ o ministro Carlos Ayres Britto, que assume a presidência do STF em abril.
Mais afinado com a sociedade, o Supremo dá sinais de que se tornará menos conservador daqui para a frente. Tanto que, em todos os votos, os ministros fizeram referências aos anseios dos brasileiros por transparência e punições aos corruptos. Enquanto os ministros mais progressistas defendiam tratamento igual a todos os cidadãos e zelo com a coisa pública, os mais preocupados em preservar os magistrados lembravam que o Judiciário não poderia depender das pressões sociais. Mas, nas conclusões dos próprios votos, os ministros se preocupavam em repetir que não eram corporativistas e reformulavam frases para evitar interpretações diversas. “Vou repetir que não somos contra o CNJ. Senão amanhã vão me criticar. Vão interpretar. O que o grupo minoritário defendeu foi a necessidade de provocação para que haja a investigação pelo conselho”, afirmou Cezar Peluso. “É bom mesmo explicar isso porque senão vão dar interpretações equivocadas sobre o que pensamos e defendemos”, completou Luiz Fux.
Além de manter o artigo que garante sessões públicas para processos disciplinares, a maioria dos ministros concordou com a obrigatoriedade para que os juízes se cadastrem no sistema de penhora online do Banco Central, o Bacen Jud. Esse cadastramento serve para facilitar a fiscalização de transações financeiras suspeitas. Em linhas gerais, todas as decisões fortaleceram o CNJ. Mas, na verdade, o Conselho também teve suas deficiências expostas. Nos debates entre os ministros, fez-se referência à falta de transparência do próprio órgão fiscalizador e aos excessos que o Conselho tem cometido. Afinal, contratos e licitações com valores faraônicos também têm colocado o CNJ sob suspeição. Ainda não foi explicada, por exemplo, a compra de uma central nacional de informações processuais do Poder Judiciário e de uma “sala-cofre” de 57 metros quadrados. O valor dessas compras pode passar de R$ 68 milhões e obrigou o presidente do CNJ, Cezar Peluso, a se explicar para os outros conselheiros, num encontro secreto. O que conflita com o espírito das decisões tomadas pelos próprios ministros do STF na semana passada. “A cultura do biombo, graças a Deus, foi substituída pela cultura da transparência. Nas coisas públicas, o melhor desinfetante é a luz do sol”, ressalvou Carlos Ayres Britto, repetindo a célebre frase pronunciada pelo juiz da Corte Suprema Americana, Louis Brandeis.
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