Aprovação das contas da campanha à reeleição é
recebida com alívio pelo governo, mas o parecer do ministro Gilmar
Mendes mantém a contabilidade petista sob suspeita e pode até ligá-la à
Operação Lava Jato
Sérgio Pardellas (sergiopardellas@istoe.com.br)
O PT e a
presidente Dilma Rousseff viveram dias de forte expectativa até
receberem na noite da quarta-feira 10 a aprovação parcial da prestação
de contas da campanha de 2014. Após o plenário do Tribunal Superior
Eleitoral (TSE) afastar a hipótese de rejeição, Dilma ganhou um respiro.
Poderá comparecer à cerimônia de diplomação no dia 18 sem o
constrangimento de ser apontada como uma candidata em desconformidade
com a Justiça Eleitoral. Mas as ressalvas do voto do ministro-relator do
processo de prestação de contas, Gilmar Mendes, mantiveram aceso o
sinal de alerta no Planalto.
Indícios de irregularidades
As observações de Mendes são contundentes e
remetem às investigações da Lava Jato, que apontaram o financiamento
oficial de campanha como o método mais usado para lavar o dinheiro
desviado da Petrobras. Em seu parecer, o ministro foi assertivo ao dizer
que não eximia o PT de futuras responsabilizações que poderão vir de
apurações de outras instâncias. “Ressalte-se que essa conclusão não
confere chancela a possíveis ilícitos antecedentes e/ou vinculados às
doações e às despesas eleitorais, tampouco a eventuais ilícitos
verificados pelos órgãos fiscalizadores no curso de investigações em
andamento ou futuras. Pelo contrário, foram verificados indícios de
irregularidades que merecem a devida apuração.”
Há duas semanas, em um dos mais reveladores
depoimentos até então sobre o esquema de desvios de recursos da
Petrobras, o empresário Augusto Ribeiro de Mendonça Neto, executivo do
grupo Toyo Setal, disse a procuradores e policiais que o PT, entre 2008 e
2011, recebeu parte da propina na forma de contribuição ao partido por
meio do “caixa 1” de campanha. A confissão confirmou reportagem de capa
de ISTOÉ publicada uma semana antes. As doações ao PT foram
intermediadas pelo diretor de Serviços da Petrobras, Renato Duque, que
era o elo com o tesoureiro da legenda, João Vaccari Neto. Vem daí os
temores do Planalto. “Se comprovarem futuramente que a campanha foi
alimentada por dinheiro desviado, fruto de superfaturamento, a chapa de
Dilma à reeleição está comprometida”, afirmou um ministro do TSE à
ISTOÉ.
O trabalho de análise formal de notas
fiscais e recibos, feito por técnicos do TSE, apontou irregularidades em
pelo menos 13,88% dos R$ 350 milhões declarados em despesas pela
campanha de Dilma. Na avaliação de Mendes, os R$ 48,5 milhões em questão
compõem uma pequena amostra de um universo que não pode ser desvendado
pelos servidores do tribunal. Assim, o relator encaminhou as contas
ressalvadas para o Conselho de Controle de Atividades Financeiras
(Coaf), Receita Federal, Ministério Público Federal. As secretarias de
Fazenda Estadual de São Paulo e Fazenda Municipal de São Bernardo do
Campo – cidade sede da Focal Confecção e Comunicação Visual – também
receberão cópias da prestação de contas para realizar investigações
paralelas. Isso porque a empresa Focal de São Bernardo recebeu R$ 23,9
milhões do PT e chamou a atenção da Justiça Eleitoral. Um dos membros do
quadro societário é um motorista com renda mensal de R$ 2 mil (leia
matéria ao lado). O relator não pôde usar a suspeição como elemento para
rejeitar as contas, mas não deixou de frisar a gravidade da denúncia.
“A conduta configura crime de falsidade ideológica. Não se pode
descartar a possibilidade de os serviços não terem sido efetivamente
prestados, servindo o contrato como forma de desviar recursos da
campanha. Estamos diante de indicativo de irregularidade em empresa que
prestou serviços à campanha, da ordem de 24 milhões. Ou seja, o próprio
valor sugere que os fatos merecem apuração.”
Relatório técnico
Quando recebeu os 245 apensos com
documentos da prestação de contas, Mendes escalou servidores do tribunal
e solicitou ajuda de funcionários da Receita Federal, Banco Central e
Tribunal de Contas da União para processar os dados. Mas a força-tarefa
restringiu o trabalho a aspectos meramente técnicos. Faltou braço e
tempo para que os documentos de receitas e despesas apresentados pelo PT
fossem esmiuçados a ponto de detectar a utilização do partido como
instrumento de lavagem de dinheiro, confirmando relatos de diretores das
empreiteiras Toyo-Setal, Queiroz Galvão e Galvão Engenharia à Polícia
Federal. Os empreiteiros afirmaram que de 2008 a 2011 as doações legais
foram usadas para “esquentar” recursos ilícitos. “Os poucos quadros dos
servidores não permitem investigações para mostrar se uma doação
aparentemente legal veio de um esquema de corrupção”, frisou Mendes ao
iniciar a leitura do voto.
A descentralização de pagamentos e repasses
de outros diretórios ao PT nacional e à campanha presidencial ajudou a
mascarar a identidade de alguns doadores, de acordo com o relatório
técnico do TSE. O trabalho identificou que o Sistema de Prestação de
Contas Eleitorais (SPCE) distorcia os valores ao analisar movimentação
de dinheiro entre comitês. Quase R$ 30 milhões em prestações de contas
irregulares referiam-se a discrepância de datas entre o lançamento de
recibos de gastos e a emissão de notas fiscais e transferência de
recursos de diretórios estaduais para o nacional e campanha
presidencial. Por isso, o parecer técnico dos analistas do TSE apontou
para a desaprovação das contas de Dilma e do PT. Embora a recomendação
dos técnicos não tenha sido endossada pelo TSE, irregularidades
semelhantes encontradas na contabilidade da campanha de Geraldo Alckmin
ao governo de São Paulo foram suficientes para o TRE-SP desaprovar suas
contas na última semana.
Dinheiro sem carimbo
Recentemente a Justiça Eleitoral adotou um
novo método de apuração de informações chamado “sistema de
circularização”. Firmas que aparecem como fornecedoras e recebem grandes
quantias são intimadas a comparecer em juízo para detalhar e confirmar a
prestação de serviços a candidatos. Segundo o advogado eleitoral
Eduardo Nobre, a aprovação com ressalvas é apenas uma decisão usual da
corte. A investigação de irregularidades mais graves se dá em um segundo
momento. “Os mecanismos melhoraram, mas realmente se perde o rastro,
porque dinheiro não tem carimbo”, afirma Nobre. A novidade ainda não é
usada em larga escala e não foi aplicada na verificação das contas
presidenciais. Os desdobramentos das investigações do caixa do PT que
seguirão em outras esferas, porém, podem trazer dor de cabeça à
presidente.
O motorista de R$ 24 milhões
Ludmilla Amaral
Na semana passada, em meio às discussões
sobre as contas da campanha de reeleição da presidente Dilma Rousseff
(PT), um insólito personagem chamou a atenção. Trata-se de Elias Silva
de Mattos, um motorista que, em novembro de 2013, se tornou sócio
minoritário da Focal Confecção e Comunicação Visual, localizada em São
Bernardo do Campo, no ABC paulista. A Focal foi a empresa que mais
lucrou com a corrida eleitoral petista, cerca de R$ 24 milhões, ficando
atrás apenas da Pólis Propaganda, do marqueteiro João Santana (R$ 70
milhões). Segundo documentos da Junta Comercial de São Paulo, Elias
(cota de R$ 3 mil) aparece como sócio-administrador ao lado de Carla
Regina Cortegoso (cota de R$ 27 mil), filha de Carlos Cortegoso,
empresário citado nas investigações do mensalão. Em sua primeira
declaração, antes de atrair os holofotes, Elias chegou a dizer que sabia
que a empresa “ia virar um transtorno na sua vida”.

Na quarta-feira 10, ISTOÉ esteve com o
motorista. Vestindo uma camisa azul-escura e jeans surrado, ele apareceu
na sede da Focal acompanhado por cinco homens. Aparentando estar tenso,
evitando olhar nos olhos do interlocutor, Elias – um moreno alto, de
cabelos encaracolados e fala mansa – contou que trabalha na empresa há
oito anos e que conhece Carlos de outros serviços prestados, antes de
fazer parte do Grupo Focal. Segundo o motorista, seu “crescimento na
firma” foi fruto do trabalho árduo. “Um faxineiro, por exemplo, não pode
ser promovido?”, questionou gesticulando com as mãos. Um homem, mais
baixo, grisalho, que não quis se identificar, mas parecia orientar
Elias, o interrompia quando achava que ele falava demais e aconselhou a
reportagem a procurar por Carlos Cortegoso. “Ele (Carlos) é o verdadeiro
dono da empresa. O Elias cuida da administração aqui”, disse o homem.
Antes de fechar o portão, Elias fez um apelo. “Eu não quero me expor,
minha mãe tem problemas no coração e eu já estou preparando ela para o
pior”.
SOB SUSPEITA
A sede da Focal fica localizada em São Bernardo do Campo.
O motorista e sócio Elias mora a 4 km da empresa,
em um bairro da periferia da cidade
Elias mora a 4 km da empresa, em um bairro
da periferia de São Bernardo. O portão estreito, que até a terça-feira 9
exibia adesivos da campanha de Dilma, mas que foram retirados na
quarta-feira 10, leva a uma casinha com estrutura precária e sem pintura
nos fundos de um salão de cabeleireiro. A proprietária do salão disse
que é muito difícil encontrar com Elias. “Estou aqui há dois anos e o
vejo muito pouco.” Segundo ela, o salão abre às 10h e o ex-motorista já
está fora de casa nesse horário. Ela fecha o portão às 19h e Elias
raramente chega antes disso. De acordo com vizinhos, ele mora sozinho
com um cachorro.
O proprietário de um boteco ao lado da casa
do motorista de R$ 24 milhões contou à ISTOÉ que “cada dia ele aparece
em sua residência com um carro diferente”, mas que não procura contato
com os vizinhos.
O relacionamento da Focal com o Partido dos
Trabalhadores é de longa data, como mostram as prestações de contas de
eleições passadas. A Focal monta comícios do partido desde 2006. Assim
como a empresa, Elias também tem ligação pretérita com o PT.
O ex-motorista trabalhou como arquivista no
Sindicato dos Metalúrgicos na época de Jair Meneguelli e do deputado
Vicentinho – décadas de 80 e 90 –, ambos filiados ao PT. Procurado pela
reportagem da ISTOÉ para falar sobre o assunto, Vicentinho informou por
meio de sua assessoria que preferia “não falar sobre isso”.
Na terça-feira 9, o empresário Carlos
Cortegoso admitiu que a segunda maior fornecedora da campanha de Dilma
Rousseff é dele, embora esteja em nome de outras pessoas, no caso a
filha e o motorista Elias. “Eu que toco a empresa e sou o responsável.
Eu precisava e ele (motorista) merecia. Ele era quem mais reunia méritos
para ser recompensado”, alegou.
De acordo com Cortegoso, ele pediu à filha
Carla que assumisse o negócio porque ele estava inadimplente em 2003
quando a empresa foi montada. Não foi a primeira vez que Cortegoso e a
Focal foram enredados num escândalo petista. Ele e a empresa surgiram
como destinatários de dinheiro do esquema do mensalão, conforme uma
lista encaminhada pelo empresário Marcos Valério à CPI dos Correios, ao
Ministério Público e à Polícia Federal. Na ocasião, Cortegoso foi
autuado e teve de pagar uma multa de R$ 1,5 milhão. Atualmente, se diz
parceiro do marqueteiro João Santana. A porta de entrada no partido foi
pelas mãos de Paulo Okamotto, assessor de Lula. Depois, estreitou laços
com os tesoureiros do PT Delúbio Soares, Paulo Ferreira e João Vaccari
Neto, hoje envolvido no escândalo da Petrobras. O tesoureiro da
campanha de Dilma Rousseff, deputado estadual Edinho Silva (PT),
confirma a relação antiga entre a Focal e o PT e disse que a empresa
recebeu vultosos pagamentos porque prestou serviços de montagem de
palanques e de material gráfico para a reeleição da presidente.
Mesmo com tantos amigos ilustres, Cortegoso
alega que convidou Elias Mattos para assumir a sociedade, pois não
tinha outra pessoa de confiança, como alguém de sua família, para
integrar a empresa.
Os técnicos do Tribunal Superior Eleitoral
(TSE) que examinaram as contas da campanha de Dilma consideraram
irregulares as notas fiscais da Focal e Elias pode ser a peça-chave para
ajudar na investigação.
Fotos: André Dusek/Estadão Conteúdo; Jonathan Ernst/Bloomberg via Getty Images, FELIPE GABRIEL