O temor da arbitrariedade voltou ao
Brasil. Ferindo a Carta Magna, os ministros do Supremo Dias Toffoli e
Alexandre de Moraes usaram do poder da lei e atentaram contra a
liberdade de expressão e direitos individuais, numa afronta mais grave
do que a praticada pelos militares nos tempos da ditadura. Afinal,
deveriam ser eles os guardiões da Constituição
Sérgio Pardellas (com reportagem de Rudolfo Lago, Ary Filgueira e Wilson Lima)
A liberdade de expressão é um valor inegociável. Insurgir-se contra
ela é como ferir de morte preceitos universais e democráticos.
Reveste-se ainda de maior gravidade quando a afronta a esse direito
constitucional é perpetrada justamente por quem deveria assegurá-lo. O
STF é o guardião máximo das leis e da Carta Magna. Mas o que o País
testemunhou estupefato, na última semana, foi ao rebaixamento do
tribunal a uma corte inquisitorial de uma republiqueta de bananas. Pior:
a céu aberto – numa espécie de trevas nas luzes. Por isso, os dias 13 e
15 de abril de 2019 vão ficar indelevelmente marcados. Lembrados na
posteridade como aqueles em que cidadãos brasileiros viram novamente –
34 anos depois do fim da ditadura militar – a sombra negra da autoridade
pública atentar de forma arbitrária contra as suas liberdades.
“Mordaça, mordaça. Isso não se coaduna com os ares democráticos da
Constituição de 1988. Não temos saudade de um regime pretérito. Não me
lembro, nem no regime pretérito, que foi um regime de exceção, coisas
assim, tão violentas como foi essa”, lamentou um dos próprios ministros
do tribunal, Marco Aurélio Mello.
Na manhã do sábado 13, os jornalistas da revista digital Crusoé e do
site O Antagonista receberam das mãos de um oficial de Justiça uma
determinação do ministro do Supremo Tribunal Federal Alexandre de Moraes
que censurava integralmente o conteúdo de uma reportagem. Na tarde do
mesmo dia, outro agente da Justiça os multava em R$ 100 mil pelo alegado
descumprimento da decisão, quando na verdade ela tinha sido pronta e
integralmente cumprida. Na segunda-feira 15, as casas de sete cidadãos
brasileiros, entre eles um militar, foram invadidas. Seus computadores
pessoais levados. Motivo: eles manifestaram indignação sobre o que
consideram desmandos do Supremo. As decisões tomadas em conjunto pelo
presidente da Corte, Dias Toffoli, e pelo ministro Alexandre de Moraes
chocam por inúmeras razões. A primeira é pela estultice, já que o efeito
prático foi o inverso. Além de tisnar a imagem do STF, não evitou de
forma alguma que o Brasil inteiro hoje saiba que, na planilha da
Odebrecht, Toffoli é “o amigo, do amigo de meu pai”. Bem mais grave que a
estupidez inócua é, porém, a forma como retornou ao País a censura, a
perseguição e a intimidação de pessoas pela simples manifestação do
pensamento. Na ditadura, quando tais atos se banalizaram, o País vivia
um regime de exceção que eliminara, por diversos atos discricionários
dos generais de plantão, a liberdade. O Ato Institucional nº 5 cassou
três ministros do Supremo pela defesa que faziam dos direitos
constitucionais e dos princípios democráticos: Vitor Nunes Leal, Hermes
Lima e Evandro Lins e Silva. Assim, é inacreditável, intolerável mesmo,
que a aura da censura e da intimidação regresse agora justamente por
atos de ministros do STF em plena democracia, pela interpretação torta
da Constituição, leis e regimentos.
Desde que, no dia 14 de março, Toffoli estabeleceu um inquérito para
investigar “notícias fraudulentas (fake news), denunciações caluniosas,
ameaças e infrações revestidas de animus caluniandi, diffamandi e
injuriandi, que atingem a honorabilidade e a segurança do Supremo
Tribunal Federal, de seus membros e familiares”, vão-se escrevendo na
Suprema Corte tristes páginas de decisões equivocadas que contribuem
para manchar a sua reputação. Se inicialmente prevalecia sobre a atitude
de Toffoli apenas uma suspeita de que, antes de resguardar o STF, os
atos visavam preservar os próprios ministros de investigações e
suspeitas que pesam contra eles, os propósitos ficaram óbvios na última
semana – quais sejam, o uso e abuso das prerrogativas do cargo tão
somente para blindagem própria. Ao tentar justificar o injustificável,
no caso a censura, Toffoli transformou uma informação que o comprometia
íntima e pessoalmente num ataque à instituição, quando nem de longe se
tratava disso. O epíteto “amigo, do amigo do meu pai” faz alusão a
Toffoli, não ao tribunal. O presidente da Corte sabia disso, mas
preferiu se apresentar como a encarnação das instituições. A
personificação do Supremo.
No episódio em que outro togado, o ministro Alexandre de Moraes, não
se limitou ao papel de coadjuvante, houve ainda clara extrapolação de
atribuições. No sistema penal acusatório, não pode um único organismo
estabelecer todas as funções de ofício. Normalmente, um órgão acusa,
outro defende e um terceiro julga. O Supremo resolveu cumprir todos os
papéis. Foi ao mesmo tempo o querelante (reclamante), quem investiga
(poder de polícia), acusa (promotor) e o juiz que decide – avocando para
si, por lamentável, a postura de censor, aquele que, sabe-se bem, em
tempos sombrios da vida nacional circulava e rabiscava as reportagens
proibidas. Coube à procuradora-geral da República, Raquel Dodge,
questionar o sentido do pedido de investigação, uma vez que não estavam
identificados “os fatos específicos”. Para Dodge, tratou-se de uma
janela para coibir qualquer coisa que provocasse incômodos ao Tribunal.
Dodge não é ministra do Supremo, mas sabe muito bem que, no Estado
Democrático de Direito, a informação é desimpedida e livre. Só num
Estado de arbítrio compete à Justiça determinar o que é e o que não é
verdadeiro, obrigando retirar das páginas o que não considera
correspondente aos fatos. Tornar uma revista ou um jornal co-partícipe
de um crime de vazamento de informação – que nem sigilosa era – equivale
a censurar previamente matérias investigativas de todo e qualquer
veículo. Não só. Como a Carta Magna assegura a liberdade de expressão
conquistada no Brasil pela via democrática, agredi-la como se fez
perseguindo críticos e invadindo porta a dentro seus lares é agredir a
democracia em si. Como bem disse Ulysses Guimarães durante a promulgação
em 1988: a Constituição certamente não é perfeita. “Quanto a ela,
discordar sim. Divergir, sim. Descumprir, jamais. Afrontá-la, nunca”. “A situação é de arquivamento deste inquérito. Não admite-se que o órgão que julgue seja o mesmo que investigue e acuse” Raquel Dodge, Procuradora-Geral da República (Crédito:Mateus Bonomi / AGIF)
Embora o Supremo se esmerasse em conferir ares de conspiração a uma
atividade intrinsecamente jornalística, é irrefutável: o ministro e
relator do inquérito, Alexandre de Moraes, com as bênçãos de Toffoli,
aproveitou uma filigrana jurídica para justificar uma arbitrariedade. A
minúcia era o fato de a PGR não ter recebido o tal documento. Aí tudo
virou “fake news” – pretexto torpe para justificar a escalada contra a
liberdade de expressão. O mais assustador é que, no desenrolar do
episódio, Toffoli e Moraes, ao invés de perceberem a gravidade do erro,
aprofundaram ainda mais o arbítrio, ao irem adiante sem freios com a
toada fora da curva democrática que embalou a invasão às residências de
sete cidadãos. Entre eles, o microempresário Ermidio Nadin, de 67 anos,
que fabrica roupas para cachorros, e cujo perfil no Facebook registra
módicos 200 seguidores. Ou Isabella Sanches Trevisani, candidata a
deputada estadual no ano passado, que recebeu tão somente 512 votos.
Alguém acredita que esses simplórios cidadãos representem de fato uma
ameaça às instituições ? Pois a ação patrocinada pelos togados do STF
sustentava a doidivana argumentação de que essas pessoas, pelas
postagens que fizeram, conspiravam para fechar o STF. Dos alvos da
operação de busca e apreensão, o mais notório foi o general reformado
Paulo Chagas, candidato a governador do Distrito Federal pelo PRP.
Chagas defendia a necessidade de criação de um “tribunal de exceção”
para controlar o STF. Antes de a polícia invadir a casa do militar no
bairro de Águas Claras, no Distrito Federal, o general tinha ido a São
Paulo buscar seu neto para passar a Páscoa com ele. “Fiquei surpreso.
Fiz algumas críticas. Mas nada que ensejasse uma ação dessas”,
argumentou Chagas à ISTOÉ após a ação policial. No fim da semana, a
Procuradoria-Geral da República ainda tentou sustar o inquérito. O
ministro Alexandre de Moraes deu de ombros. Indeferiu integralmente o
pedido e seguiu sua balada rumo à inexorável desmoralização do STF. MORDAÇA O senador Major Olimpio, do PSL, protesta defronte à sede do STF contra a volta da censura (Crédito:Divulgação)
Rui Barbosa afirmava que a imprensa é a vista da nação. Por ela é que
a nação acompanha o que lhe passa ao perto e ao longe, enxerga o que
lhe malfazem, devassa o que lhe ocultam, colhe o que lhe sonegam,
percebe onde lhe alvejam, mede o que lhe cerceiam, vela pelo que lhe
interessa, e se acautela do que a ameaça. Por isso, impedir a publicação
de algo é como amordaçar não apenas a boca, mas também vendar os olhos
de uma nação. Foi o que o STF conseguiu fazer. Não por acaso, vozes das
mais eloquentes da República levantaram-se contra o tribunal, que como
bem definiu recentemente o ex-ministro Ayres Britto adota comportamentos
reveladores “de uma certa pequenez de alma”. Até o presidente Jair
Bolsonaro, tão criticado por ter flertado no passado recente com
práticas anti-democráticas, deu uma aula ao Supremo: “A mídia é
necessária para que a chama da democracia não se apague”, afirmou ele na
quinta-feira 18. A Transparência Internacional também entrou em cena ao
classificar como “intolerável” e “um grave precedente” a decisão dos
ministros do tribunal. O procurador da República João Paulo Lordelo
chegou a dizer que um inquérito judicial, civil, policial e universal,
em que tudo se decide por ofício, faz o Brasil se parecer com o Irã. “Ministro Toffoli diz que a liberdade
de expressão ‘não deve servir à alimentação do ódio, da intolerância, da
desinformação’. Errado, ministro. A liberdade de expressão existe
porque ninguém é dono da verdade. Nem o Supremo.” Fernando Schüler, cientista político
O jornalista e médico Giovanni Battista Líbero Badaró é autor de um
libelo pela liberdade de imprensa – um livreto de 30 páginas escrito no
longínquo ano de 1830. O texto fustigava D. Pedro I, imperador que
recusava-se a se submeter à Constituição de 1824, outorgada por ele
próprio. “Se não é a liberdade de imprensa, que faça chegar os gemidos
dos oprimidos ao ouvido dos imperantes, quem o fará?”. Líbero Badaró
lembrava há quase dois séculos que não somente as instituições políticas
devem os seus maiores progressos à liberdade de imprensa: “As artes, as
ciências, a civilização toda é intimamente ligada a ela”. Que ministros
da mais alta corte do País jamais voltem a vilipendiar, além da
Constituição, as próprias páginas da história. STF, afaste da imprensa
esse “cale-se”.
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